As ciências humanas são as ciências do homem em sua especificidade, e não de uma coisa muda ou um fenômeno natural. O homem em sua especificidade humana sempre exprime a si mesmo (fala), isto é, cria texto (ainda que potencial). Onde o home é estudado fora do texto e independente deste, já não se trata de ciências humanas (anatomia e fisiologia do homem, etc.)(Mikhail Bakhtin)
Introdução
Se num passado recente acreditamos que a validade de nossos enunciados era dada pelo fato de eles descreverem o real, hoje perdemos a inocência e ficamos ao léu: donde extrair alguma validação de nossas compreensões? Obviamente esta pergunta somente faz sentido para aquele que pretendem viajar para terras de além das certezas patrocinadas pelas teorias. Somente no interior das teorias podemos falar em critérios de verdade pra validarmos nossas afirmações. Fora delas, parece que vivemos uma teratologia de que não conseguimos escapar.
É mais ou menos óbvio que toda a fala se organiza em função dos objetivos a serem atingidos, constrangido o discurso à situação de sua produção. As remessas a elementos da situação, as ancoragens demonstrativas, todas as expressões de remessas que se fazem com os elementos de mostração com que apontamos, acompanhados de gestos indicativos (por exemplo, no uso dos pronomes demonstrativos) ou pelos dêiticos pessoais, temporais ou espaciais (eu, agora, aqui) parecem garantir uma fidelidade entre a expressão linguística e o mundo real. Sabemos, no entanto, que isso não acontece: cada história é contada segundo os interesses daquele que narra; todo fato tem sempre sus versões, é inescapável que opinemos quando pretendemos apenas descrever, até pela seleção lexical que fazemos ao falar de algo: um mesmo objeto no mundo, como o planeta Vênus, é mostrado ora como “estrela da manhã”, ora como “estrela da tarde”, e nem estrela é… Se este exemplo é clássico, e serviu de base para teorias semânticas de base lógica, mais significativas são, do ponto de vista do discurso, as formas de retomadas, as nominalizações, quando examinamos sequências discursivas como o exemplo abaixo:
Após explodir uma parede com uma bomba […] um grupo de 20 homens encapuzados e armados com fuzis e metralhadoras levou mais de R$ 10 milhões […]. A PM chegou quando os criminosos fugiam […]
Independentemente da adequabilidade ou não da retomada de “um grupo de 20 homens” por “criminosos” – aqui obviamente adequada [mesmo que os banqueiros sejam mais criminosos do que os ladrões] – o que se quer exemplificar é que estes usos fazem passar como definições o que de fato são predicações feitas pelo falante e através delas emitem-se opiniões, constroem-se realidades. É neste sentido que, com a língua, não representamos o mundo, mas construímos uma realidade sobre o mundo.
Tínhamos, no entanto, uma escapatória para estes usos aparentemente “espúrios” da linguagem comum: acreditou-se que a ciência efetivamente falava a realidade, representava a realidade. Que a garantia de verdade dos princípios científicos nos era dada pela relação entre seus enunciados e o mundo real, como se uns e outro coincidissem. O século XX, desde Einstein, começa a destruir estas certezas e cada vez mais os cientistas sabem que não expressam o real quando falam do mundo, mas expressam o que conseguem dele captar com os instrumentos de que dispõem. Perdemos as certezas e com isso a ingenuidade. O uso ordinário da linguagem e o uso da linguagem científica já não são assim tão díspares como imaginávamos. E por isso a questão das validações das afirmações científicas se restringe, hoje, ao interior das próprias teorias que permitem as enunciações feitas.
No movimento próprio do fazer ciência, a Linguística erigiu-se como tal apostando nas possibilidades de um dizer sobre a língua (e a linguagem) que fosse validado pelos princípios assumidos pela teoria. O festo inaugural de Saussure, afirmando que uma das tarefas da Linguística era definir seu próprio objeto, colocou esta ciência de forma clara na modernidade: sobre o objeto construído se pode dizer verdades, mas estas verdades não são relativas ao real, mas a este objeto. Obviamente isto teve um custo enorme: o estruturalismo delimitou fortemente o campo de estudos, excluindo de seu âmbito fenômenos que tradicionalmente foram estudados na área de Letras, entres estes, os textos e os discursos.
A insatisfação com os resultados
É bem verdade que a Linguística, ao redefinir o objeto de estudos, fez uma opção fundamental – e talvez este seja para a “cidade das letras” o seu pecado original: a autoridade sobre a língua é do falante e não do escritor. Tradicionalmente, estávamos habituados a estudar regras de funcionamento da língua com base no texto escrito, preferencialmente o texto literário. Todos nós encontramos as exceções: a regra estabelecia algo, mas um ou outro exemplo de escritor infringia a regra e, como escritor não “comete infração” – apenas os falantes são apontados como errados – havia a exceção aberta pelo gramático.
Ao eleger a fala como o campo de estudos – e o falante como autoridade em matéria de língua – o estruturalismo excluiu, no entanto, o texto ou o discurso, que são efetivamente as unidades de fala: nós produzimos textos quando falamos. Nós não falamos orações, palavras, morfemas ou fonemas. E o que importa quando falamos não é o reconhecimento do que se repete, do que retorna, mas o sentido que se constrói a cada interlocução, e os sentidos demandam compreensões dos sujeitos envolvidos. O discurso necessariamente coloca o sujeito em relação; os sentidos colocam necessariamente em relação elementos externos ao linguístico porque incluem a história, o já conhecido, mas também o acontecimento, o “aqui e agora” da enunciação.
Mesmo o desenvolvimento dos estudos sobre a língua, no recorte que exclui o discurso e os textos, produziu um conjunto de insatisfações teóricas e práticas. Do interior mesmo do projeto de descrição da língua emergiram fenômenos significativos que exigiram a inclusão do discurso para que a própria língua fosse descrita e seus fenômenos explicados. Retomo aqui uma breve listagem destes fenômenos:
- a dêixis – pessoa, tempo e espaço expressam-se nas línguas conhecidas através de “signos referencialmente vazios” (o que não significa serem semanticamente indeterminados), demandando a remessa às instâncias discursivas para preencher suas referências;
- as modalidades, recursos através dos quais se marca no enunciado a atitude do locutor em face do que profere;
- a performatividade, em que a enunciação identifica-se com o próprio ato e cuja realização obedece a “condições de felicidade” definidas nas relações sociais externas ao sistema, no interior das quais as formas linguísticas adquirem ou fazem sentido;
- a polissemia e o duplo sentido, em que, na combinação sintagmática dos elementos do sistema, ao mesmo tempo dois ou mais significados se presentificam em um só signo para que o sentido se produza;
- a argumentação, cuja orientação vem marcada não só pelos “conteúdos” mas também pelos torneios sintáticos de construção;
- a implicação, um não dizer que se deduz do dito e do fato de dizer;
- a polifonia e a heterogeneidade, fenômenos aparentemente da fala mas que ‘impregnam’ os elementos do sistema linguístico e não podem ser desconsiderados em sua descrição (Geraldi, 1996:11-12).
Estes fenômenos e os poucos resultados práticos que a Linguística forneceu para a compreensão dos discursos e dos textos levaram à expansão de seu objeto. De um lado, a crença na cientificidade da Linguística levou à proposta inicial de uma “gramática do texto”, considerando que este era nada mais nada menos do que um nível de análise, articulando-se aos níveis fonológico e morfossintático. Apostava-se na manutenção dos mesmos princípios de descoberta, na manutenção do modelo de fazer ciência da linguagem, incluindo, agora, os textos. De outro lado, a Análise do Discurso propunha uma terceira categoria – a categoria do discurso – que mediaria a língua e a fala. Esta não era um simples uso livre daquela, mas regulada pelo discurso a que cada fala se subordinava e se subordina. Em vez de pensar dicotomicamente, haveria um terceiro elemento entre o sistema e seu uso, o que implica necessariamente uma revisão dos fundamentos da Linguística.
Texto e discurso
Ambas as disciplinas – a Análise do Discurso e a Linguística Textual(2) – têm algumas característica em comum:
- nenhuma delas considera o discurso ou o texto uma mera sequência de de unidades menores, como a oração, mas tomam o discurso ou o texto como uma unidade;
- ambas elaboraram conceitos analíticos que remetem muito mais a processos do que a entes: coesão e coerência textuais são processos e como tais estão marcados no texto, mas não são entes nele localizáveis como se fossem expressões específicas; o já-dito e a ideologia que orientam o dizer do discurso não são objetos discretos e separáveis do discurso, mas eles estão sempre presentes. Isto significa que estas disciplinas, diferentemente das demais disciplinas linguísticas, dedicam-se aos estudos dos processo e não das ontologias;
- ambas as disciplinas têm claro que um texto ou um discurso não resulta de uma atividade ou comportamento que segue um conjunto de regras. Muito mais do que regras, ambas apontam para regularidades, para estabilidades e instabilidades, para relações internas e externas, para ancoragens no linguístico do que é social e histórico.
A estas poucas características comuns a ambas as disciplinas, outras podem ser acrescentadas. O que não significa que uma e outra se diluem num mesmo arcabouço teórico. Ao contrário, suas aproximações somente podem ser frutíferas considerando-se o fenômeno que estudam e não os objetos que constroem.
Sem qualquer pretensão de estabelecer as linhas demarcatórias de uma e outra disciplina, talvez seja útil considerar que ambas tomam como fenômeno de partida a existência de um processo de relação entre sujeitos (com Bakhtin, esta relação poderia ser chamada de interação verbal). Nesta relação os sujeitos operam com recursos expressivos segundo um conjunto de constrições que não são apenas de ordem gramatical. Nesta atividade, que não se realiza fora da esfera da comunicação e, portanto, fora de uma determinada formação social, os discursos também são constringidos pelo já-dito, pelo pertencimento dos sujeitos a determinadas posições sociais e são marcados pelas instituições em que ocorrem. É por isso que podemos falar em discurso jornalístico, discurso religioso, discurso científico etc. Para a Análise do Discurso importam estas relações que, aparentemente externas, se marcam, se presentificam no discurso. Estes discursos, que encontram no social (memória e acontecimento) sua materialidade, por seu turno se materializam em texto: necessariamente todo discurso se “textualiza”, torna-se uma sequência. A Linguística Textual toma este fato como seu foco e é a partir desta textualização que constrói suas categorias de análise.
Certamente um dos argumentos mais importantes para a defesa que o texto e o discurso estão demandando a redefinição do objeto da Linguística é que um discurso e seu texto, no sentido do parágrafo anterior, não resultam da aplicação de regras; ao contrário, não há um conjunto de regras que, uma vez seja seguido, resulte num texto/discurso. Assim é uma crença absolutamente inadequada imaginar que se um estudante sabe as características, por exemplo, de um gênero discursivo, ele estará apto a produzir um discurso dentro deste gênero. Produzir um discurso (ou um texto) exige muito mais do que conhecer as formas relativamente estáveis dos gêneros discursivos: há que se constituir como locutor, assumir o papel de sujeito discursivo, o que impõe necessariamente uma relação com a alteridade, com o outro. E uma relação com o outro não se constrói sem sua participação, sem sua presença, sem que ambos saiam desta relação modificados.
Em um e outra disciplina trabalha-se com indícios, com recortes, com indicações para dar contra de processos. Neste sentido, estas disciplinas estão bastante longe da Linguística bem comportada que se praticou e se pratica nas pesquisas que visam estabelecer classificações, definir entes e descrever regras de combinação. Por isso, o texto e o discurso trazem uma inflexão profunda na rota dos estudos linguísticos e isto está tão presente na área que estamos começando a falar muito mais em estudos da linguagem do que em estudos linguísticos ainda que estes possam ocupar grande parcela daqueles, mas certamente sem esgotá-los. Talvez depois de um séculos de tentativa de convívio com as ciências bem estabelecidas, a Linguística esteja reencontrando o encanto da relação com sues parceiros tradicionais: a filologia, a história, a literatura, enfim. Escolher este novo caminho certamente implica abandonar a segurança dos enunciados para preferir as incertezas da enunciação, aceitar a subjetividade e a criação como terrenos próprios da linguagem e seu movimento; enfim, preferir o acontecimento à estrutura, apostar na instabilidade para nela encontrar sentidos novos.
Neste caminhar não há corrimãos, nem sequer caminhos, talvez possamos dizer, como o viajante de Antonio Machado (2205):
He andado muchos caminhos
he habierto muchas veredas;
he navegado en cien mares,
y atracado en cien riberas.
Nestes novos caminhares, certamente estamos reconstruindo parentescos, reencontrando novas parcerias. O programa moderno, que se inaugura numa leitura de Saussure, ofereceu-nos a possibilidade do estudo rigoroso de um objeto que se fecho em si mesmo – a língua. Em consequência, inspirada numa vontade de verdade científica, a Linguística se associou às metodologias próprias das ciências duras, especialmente à matemática e, mais recentemente, à neurologia. Hoje, talvez estejamos fazendo outros pactos, com os estudos da ordem das humanidades e abandonando o sonho da cientificidade, da objetividade e das fórmulas prontas, os princípios de descoberta, com que falamos sobre a língua. Mas chegamos a estes novos tempos carregados de contrapalavras – aquelas que a pesquisa objetiva conseguiu produzir e aquelas com que queremos recensear noções para construir compreensões. Estas compreensões sempre passam por duas etapas: o ponto de partida (um texto dado, um fenômeno localizado) e os contextos passados; e um ponto de chegada, à frente – presunção de um contexto futuro.
Mas sabemos, sobretudo nós linguistas, que ao ultrapassarmos o nível da oração – e já dentro deste nível em muitos casos – temos inúmeras dificuldades com o modelo científico que herdamos, já que
a interpretação das estruturas simbólicas tem de entranhar-se na infinitude dos sentidos simbólicos, razão por que não pode vir a ser científica na acepção de índole científica das ciências exatas. A interpretação dos sentidos não pode ser científica, mas é profundamente cognitiva. Pode servir diretamente à prática vinculada às coisas. “Cumpre reconhecer a simbologia não como uma forma não científica mas como forma heterocientífica do saber, dotada de suas próprias leis e critérios internos de exatidão” (Aviérintsiev) (Bakhtin, 2003:399)
Se queremos incluir entre nossos objetos der estudo os modos de construção das significações, dos sentidos, das compreensões e das interpretações, mantendo discursos e textos como nossos objetos preferenciais, aos quais chegamos com um custo considerável para nossa fama de cientistas bem sucedidos, talvez tenhamos que reconhecer que nosso objeto – agora a linguagem e seu funcionamento e não mais a língua e seu sistema de relações internas – faz parte de um tipo de atividade humana que não se deixa reduzir ao positivismo. Ela se acrescentaria a outros tipos de atividades já reconhecidos no passado como não redutíveis a um tratamento positivista:
No último texto que escreveu, Freud pesarosamente reconheceu, como tinha feito em várias ocasiões anteriores, os limites e as frustrações de seu trabalho: “É quase como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ nas quais se pode estar antecipadamente certo de que se vai obter resultados pouco satisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo” […]. Talvez ele estivesse pensando na perplexidade de um filósofo mais antigo: “Existem duas invenções humanas que que podem ser consideradas mais difíceis que quaisquer outras”, havia advertido Kant, “a arte do governo e a arte da educação; e as pessoas continuam a discutir inclusive seu significado” (Donald, 2000:63).
Não por acaso, as três artes – governo, educação, psicanálise – operam com a linguagem e todas elas têm como seu lugar de existência o sujeito que através da linguagem se constitui e constitui governo, educação e subjetividade e por estar neste universo discursivo, é por ele constituído. Por que a linguagem, esta atividade constitutiva das três práticas apontadas por Kant e Freud, deveria ser redutível ao positivismo científico?
NOTAS
- Normalmente, eu devo textos! Escrevo sempre sob a pressão do compromisso assumido para a fala num evento. Quando me pedem artigos para revistas ou capítulos de livro, em geral encaminho um destes textos revisados. Neste caso, no entanto, não tenho a menor lembrança que este texto tenha sido escrito para algum evento. Ele deve ter sido composto em função do livro em que foi publicado e certamente resulta de recortes de coisas ditas ou escritas em outros lugares. E certamente ele responde a um convite de minha ex-orientanda e colega, a Profa. Dra. Marina Célia Mendonça, uma das organizadoras do volume: Sentidos em movimento. Identidade e argumentação. Organização de Maria Flávia Figueiredo, Marina Célia Mendonça e Vera Lúcia Rodella Abriata. Editora da Unifran, Coleção Mestrado em Linguística, vol 3, 2008. Posteriormente, com pequenas alterações para evitar repetições no mesmo volume, incluí este texto na coletânea Estudos Bakhtinianos (São Carlos : Pedro & João Editores, 2010)
- A “Gramática do Texto” evoluiu para a Linguística Textual [abandonando a ideia de uma “gramática” em benefício da elaboração de princípios reguladores do texto] ; a Análise do Discurso tem diferentes orientações teóricas e até mesmo denominação, como “Análise Crítica do Discurso”; “Análise do Discurso de Linha Francesa”, entre outras formas correntes de designação.
Referências
Bakhtin, M. “Metodologia das ciências humanas” in. ______ Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra; prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov, 4ª. ed, São Paulo : Martisn Fontes, 2003.
Donald, J. “Liberdade bem regulada” in. Silva, Tomás Tadeu (org) Pedagogia dos monstros. Belo Horizonte : Autêntica, 2000.
Geraldi, João W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas : Mercado de Letras/ALB, 1996
Machado, Antonio. Obras completas. Barcelona : RBA Coleccionables, 2005, vol. I
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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