Texto curto de uma dor grande

 

Para atrair mais leitores vou começar dizendo que não vou falar do Lula, assim os desafetos poderão ler, mas talvez essa seja apenas uma estratégia para falar sem dizer, ou não escrever, mas não deixar de sentir. Nem tudo que escrevo tem verdade, e tem, porque sinto.

Sigamos, porque o argumento deste texto é dos melhores, talvez eu que não esteja à altura dele, mas atrevida que fenotipicamente sou, escrevo!

Dona Ivone Lara nos deixou no mesmo dia em que Paul Singer.  Uma data já entristecida pela situação, pelas certezas e incertezas de que o amanhã pode ser maior. Dois grandes, dois enormes.  Duas biografias irretocáveis, de contornos suaves, dados pela generosidade: de uma gente que se dá tanto. 

Ivone morreu e me reativa a necessidade de escritura. Explico. A figura já lendária que conhecemos é a da compositora que enfrentou uma sociedade entremeada de racismo e machismo para fazer com excelência seu samba…

“Alguém me avisou

Pra pisar nesse chão devagarinho

Alguém me avisou

Pra pisar nesse chão devagarinho”

(Alguém me Avisou, Ivone Lara)

E assim cantando, a música vai se parecendo com a proposta de Singer, de um socialismo que se aprende no dia a dia, que se arrisca no capitalismo traiçoeiro, por meio de uma economia solidária, de arranjos colaborativos, de uma redistribuição de renda, pisando devagarzinho em terreno perigoso.

A dama do samba também pisou devagar, por entre rodas de compositores de samba, e assim passinhos certos no compasso, eternizou em suas canções o sentimento, a história, a resistência, as dores e, de forma mais que especial, a alegria de um povo negro que insiste em sambar, em fazer poesia, em ter direito a sonhar.

Essa história linda, que transforma dor e preconceito em luta num período recente de pós escravidão – vamos entender que Dona Ivone nasceu 33 anos após abolição da escravatura – não é uma história que temos acesso todos os dias.   Muita ousadia, ou como diriam os ex-donos de negros e negras: insolência! Tornar-se enfermeira e assistente social, trabalhar em um dos setores mais elitistas e discriminatórios até hoje que é a área médica, sobretudo a de atendimento ambulatorial é não entender, entendendo seu lugar no mundo.  Arrepiante!

E aí saber que sua prática próxima, ou melhor, mergulhada na realidade material, é de uma humanidade sem igual. A partir dessa história, que me foi dada a conhecer apenas agora, por ocasião de sua morte, eu só vou exemplificar o poder transformador e revolucionário do saber com essas ações da nossa Dama Negra: buscar incansavelmente as famílias dos negros e negras que eram recolhidas nas ruas e que seriam de forma compulsória enviados para os hospícios com a finalidade de higienização social.

Muita gente não entende, talvez por que não queira, a necessidade de criar oportunidades. Ivone e Paul Singer entendiam, e eles não servem de exemplo para os que podem supor que fizeram suas oportunidades sozinhos, o que é em partes verdade. A questão é que o ponto de contato com a dor e a desumanização das pessoas constituiu nesses dois fenômenos uma força reversa.

Ofereceram a Paul Singer o que de pior a humanidade poderia produzir: o holocausto. Ele respondeu com inclusão e amor, alimentar os que têm fome, dividir e diminuir para somar e multiplicar. Criar laços que não perpassassem por etnia, cor e poder.

Para Ivone Lara a negação de nossa ancestralidade, o apagamento de nossas histórias, a brutalidade, a violência, o assassinato ou posterior descarte “ao próprio azar” depois de sistêmicos crimes foram combatidos com samba, resgates, muita poesia e narrativas.

É um texto triste esse de hoje, mas ao mesmo tempo é um texto que fala de esperança, e essa não pode ser dada assim facilmente, então é preciso mesmo que a gente se permita tocar, conhecer e pisar nesse chão devagarinho.  As histórias destes dois ícones revelam que a esperança não dorme em berço esplêndido, e talvez a esperança exija de nós outras lutas, força e sensibilidade como diz a canção:

 

“Força da imaginação, vai lá

Além dos pés e do chão, chega lá,

O que a mão ainda não toca

Coração um dia alcança

Força da imaginação, vai lá”

(Força da Imaginação, Ivone Lara)

Mara Emília Gomes Gonçalves escreve neste blog às quintas-feiras.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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