Tecnologias na escola, tecnologias da escola, por Corinta Maria Grisolia Geraldi & João Wanderley Geraldi

A educação institucionalizada nos últimos 150 anos serviu – no seu todo – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão no sistema do capital, como também gerou e transmitiu um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade, seja na forma “internalizada” (isto é, pelos indivíduos devidamente “educados” e aceitos) seja através de uma dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente impostas (István Mészáros, 2005).
 
No mínimo, uma suspeita
Um programa de educação que se funda no princípio de que “nada deve ser ensinado” porque tudo p0ode ser aprendido como é o caso neste projeto Janelas para o Mundo, certamente soará como não educativo, porque estamos acostumados com a ideia escolarizada de educação, em que a relação com o conhecimento não se dá pelo princípio da produção, mas pelo princípio da transmissão da herança cultural disponível, confessadamente de uma herança organizada na forma de disciplinas científicas, embora se saiba que muito mais que transmissão de conhecimentos, o que a escola faz é legitimar um conjunto de valores. Entre estes valores está também a relação que temos ou devemos ter com o conhecimento, tomado como algo estabelecido, pronto e verdadeiro e com a tecnologia, tomada como algo de difícil manuseio, complexa e inacessível, mas também, paradoxalmente, como algo em contínua obsolescência.
Assim, aprendemos na escola um conjunto de respostas (embora não saibamos quais forma as perguntas) que constituem o conhecimento sistematizado e que é apresentado sem história, como verdade e como correspondência com a realidade. Também aprendemos a lidar com certas máquinas, em geral desde sempre já consideradas ultrapassadas e não equivalentes àquelas que serão encontradas na vida, entendida esta apenas como a inserção no mercado de trabalho.
Em consequência das relações com estes dois grandes campos – conhecimento e a tecnologia – o sistema escolar tem sido, especialmente nos últimos anos, alvo de críticas contínuas por sua incapacidade de acompanhar, mastigar, digerir e transformar em conteúdos de ensino o que as ciências vêm produzindo e objeto de culpabilização pelo desprepara dos sujeitos para o mercado de trabalho porque não manuseia nem ensina a manusear as máquinas potentes e atuais.
De fato, a lógica do capital a que está subordinada a instituição escolar – como as demais instituições sociais do sistema – implica necessariamente que a escola funcione como instituição de preparo e seleção de sujeitos necessários à produção e, quando não necessários, capazes de culpabilizarem a si próprios pelo insucesso num sistema que propagandeia concorrência entre todos e para todos.
Na situação atual, quando “a máquina produtiva” vem se transformando muito rapidamente, não em sua essência de hierarquia em benefício do capital, mas nas formas das energias postas em ação pra a produção de bens, cada vez mais dispensando a presença da força de trabalho humana em benefício da organização eletrônica e mecatrônica da produção, nada melhor do que encontrar na própria sociedade uma instituição que assuma a culpa pela exclusão. Todos os dias e a todos os momentos, os trabalhadores dispensados são informados de que terão sucesso sem eu retorno ao mercado de trabalho se estiverem melhor preparados. Todos os dias e a todos os momentos, uma massa de novos estudantes procura as escolas para ase preparar para esta concorrência sem fim, mantendo-se na verdade a lógica que produz o desemprego, a desocupação e a concentração da renda para usufruto daqueles ainda incluídos.
Neste contexto, nada mais fácil do que exigir da escola o uso das novas tecnologias, e certamente a escola, sendo uma instituição social, não pode fugir às determinações das novas formas de que se veste e reveste o capital. Clama-se por uma escola que se atualize, que continue a ensinar (e principalmente a produzir um sistema de referências ântropo-cultural que legitime o modelo de sociedade), mas que ensine segundo as novas técnicas postas à disposição pelos meios eletrônicos de comunicação.
Não nos iludamos: por trás deste clamor, há a reprodução de uma concepção extremamente tradicional da função da escola: transmitir, comunicar informações e organizar, de preferência sub-repticiamente, um conjunto de valores que legitime a exploração do trabalho pelo capital. Reformar a escola, atualizar a escola, seria mantê-la com suas mesmas funções, para que o sujeito escolarizado de hoje permaneça sendo aquele capaz de reter em sua mente as informações disponíveis em sua área de especialidade, e aquele que se assujeita, subordina-se à lógica da sociedade em que vive. Uma exigência paradoxal: primeiro porque as informações são rapidamente ultrapassadas; segundo, porque as “máquinas” disponíveis nos liberaram da retenção das informações, facilmente acessíveis a qualquer momento e em qualquer espaço; terceiro, porque “no sentido verdadeiramente amplo do termo educação, trata-se de uma questão de “internalização” pelos indivíduos […] da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamente com suas expectativas “adequadas” e as formas de conduta “certas”, mais ou menos explicitamente estipuladas nesse terreno. Enquanto a internalização conseguir fazer o seu bom trabalho, assegurando os parâmetros reprodutivos do sistema do capital, a brutalidade e a violência podem ser relegadas a um segundo plano […] posto que são modalidades dispendiosas de imposição de valores […] as instituições formais de educação certamente são uma parte importante do sistema global de internalização. Mas apenas uma parte” (Mészáros, 2005:44).
Provavelmente, uma das razões para que os ataques sofridos pela escola se tornem cada vez mais virulentos tem a ver com o fato de que outras instituições sociais assumiram fortemente esta função de assegurar a “internalização” dos valores de reprodução do sistema do capital. Entre estas outras instituições, cremos, estão os meios de comunicação social como o jornal, o rádio e a televisão e que hoje já podemos chamar de meios tradicionais de comunicação. Não nos parece que seja por acaso que as formas de informar próprias do jornal e da televisão sejam apresentadas como aquelas que escolas deveriam assumir. E a internet faz parte deste mundo. É desta oferta de modelo, pelo qual uma reforma atualizadora do ensino poderia se dar, que julgamos ser necessário suspeitar.

Tecnologias na escola e tecnologias da escola
Como toda a instituição social, também a escola não vive sem se deixar penetrar pelas conquistas da humanidade. Desde sempre, instalada a escrita entre nós, a pena e o papiro, o códex e o livro acompanharam os processos escolares e a escola moderna que conhecemos seguramente é tributária da invenção da imprensa e do consequente letramento da sociedade. Foi a escrita que exigiu o ensino formal moderno: era preciso ler e escrever, para mais facilmente internalizar as formas de compreensão do mundo, compartilhá-las e na partilha encontrar alguma uniformidade que a divisão social do trabalho, desde a acumulação primitiva do capital, foi implantando.  Se somos diversos nas tarefas ou trabalhos que realizamos, somos uniformes nas representações de mundo que legitimam a sua reprodução.
A escola “evangelizadora”, a escola dominical, baseada na verdade revelada e já interpretada pelos seus porta-vozes, os padres da igreja, nasce dos conventos da Idade Média, principalmente após o golpe sofrido pela unidade da Igreja Católica desferido nos inícios da modernidade por Lutero e pelas reivindicações de leitura direta das escrituras. Foi preciso evangelizar ou repor a verdade através do ensinamento da doutrina já não só transmitida de forma oral para o povo, mas também através do catecismo – de uma forma ou de outra, era preciso incluir as letras impressas na escola dominical. A educação já não mais podia se firmar somente no medo e  no castigo. Extraindo algumas das mensagens das ilustrações, desenhos, fotos e reproduções de documentos recolhidos por Robert Alt (1966), é possível recuperar um pouco desta história, quando a escola teve por função social primeira a “distribuição” da verdade evangélica.

A prática do sermão serviu de modelo para a forma de disposição geográfica da sala de aula. O professor, como o pregador e muitas vezes em uma das funções de pregador, ensina repetindo a verdade e exigindo que seus alunos a aprendam e repitam palavra por palavra. Aprende-se decorando. E não faltam documentos que nos mostram a escuta avaliativa do aluno enquanto repete a lição recebida.

Mas não se creia que a escola, enquanto instituição, foi incapaz de produzir suas próprias tecnologias. Certamente a pretendida universalização do ensino, para além de oferecer as grandes vantagens da dupla formação dos recursos necessários ao sistema do capital (informação e legitimação), oferecia ao próprio capital um mercado consumidor extremamente promissor. As técnicas e tecnologias configuradas em outros ambientes mereceram ao longo da história sua adaptação ao ambiente escolar. As cadeiras ofereceram os modelos das “classes” que, apara além de serem fabricadas com fim específico, permitiram educar essencialmente o corpo e o como sentar-se. Talvez não nos ocorra chamar a estes bancos escolares ou carteiras de “cadeiras didáticas”, como chamamos aos livros “didáticos”, porque estes resultaram de uma adaptação de uma tecnologia produzida para consumo externo à escola, enquanto as “classes” ou carteiras são um produto elaborado para a escola e somente para ela. Note-se que  a ninguém ocorre, até hoje, o uso de poltronas nas salas de aula, ainda que haja muitas delas extremamente confortáveis em auditórios ou outros espaços!
 

Provavelmente a tecnologia a que estamos mais habituados é a do quadro-negro ou quadro-de-giz. Não foi ela que possibilitou, com alguns imaginam, a frontalização do ensino. A classe organizada com todos voltados para o professor (ou para o leitor) é bem anterior à tecnologia do quadro-de-giz. É verdade que houve um tempo em que a distribuição dos alunos não obedecia a esta lógica, e pode ser bem verdade que o quadro-de-giz fortaleceu sobremaneira a frontalização. Mas na história, esta tecnologia foi extremamente revolucionária. Conforme Fichtner (1996), o primeiro uso do quadro-negro foi um escândalo e os professores que o inventaram e que o levaram para dentro da sala de aula sofreram punições. Esta tecnologia representava um grande perigo: a voz do aluno (e certamente também a voz do professor) poderia ser registrada no quadro, apagada, substituída, melhorada, etc. Pela primeira vez na história, com o quadro-de-giz, tornou-se possível construir um texto escrito compartilhadamente na sala de aula. Pela primeira vez na história uma palavra pôde ser substituída, apagada e não ser considerada uma verdade já estabelecida. Imagine-se o que isso significou. Hoje naturalizamos tanto o uso do quadro-de-giz que se sequer percebemos suas possibilidades técnicas, até mesmo porque já não pensamos que ensinamos a verdade revelada e já interpretada, mesmo quando falamos em verdades, fazemo-lo em nome da ciência.

As remessas a estas tecnologias todas quer apenas chamar a atenção para o fato de que há na sala de aula tecnologias que, produzidas para outros fins, são adaptadas para uso no processo de ensino. Mas há também tecnologias que forma produzidas especificamente pra atender ao que hoje chamaríamos de um “nicho de mercado”, que é a própria escola.

Certamente as novas tecnologias dos meios de comunicação de massa não forma produzidas para a escola, mas os clamores contemporâneos vão no sentido de que elas sejam usadas na sala de aula, num sistema clássico de adaptação, pensando-se que assim a escola estará se reformando, mudando. É como se fosse exigido da escola que tivesse uma relação camaleônica com as novas tecnologias, tornando a escola e a aula algo que ela nunca foi: um sistema de informação e não um sistema de ensino. O aspecto que imediatamente pode ser salientado no emprego destas tecnologias na sala de aula é sua extrema artificialidade.
Mais recente, a tecnologia do “power point” parece ter invadido os seminários e aulas universitárias – pela falta de infraestrutura, esta praga ainda não chegou à educação básica. Se já estávamos acostumados a uma crítica à frontalização do ensino, provocada pela presença do quadro-de-giz, agora a tecnologia nos colocou à disposição uma forma de trabalho em que levamos para a sala toda uma exposição, as correlações de ideias, os “links” já previamente dados que, na movimentação ao clique no teclado, introduzem na parede outro conceito, outra imagem – procedente nãos e sabe de onde! Desaparece o sujeito e o que se ensina adquire vida própria, sem passar pela voz ou pelo tempo de raciocínio de uma sujeito. Tudo está adrede preparado, pronto. Aprender é acompanhar a montagem mais ou menos sofisticada de um  conhecimento pronto e mastigável.
Em geral, quando se exige que o processo de ensino se organize de forma a imitar camaleonicamente outras formas de informação (e educação no sentido mais amplo que este termo tem) exige-se que a escola passe a funcionar na forma de outra instituição, sem que efetivamente as questões de fundo sejam tocadas: modernize-se para que tudo permaneça como antes, isto é, a escola incorpora em suas novas metodologias as formas mais eficientes, em outras instituições, de legitimação dos valores da reprodução social. Em outras palavras, talvez tenhamos que reconhecer que hoje a escola já não é mais eficiente para realizar a reprodução das representações sociais adequadas ao funcionamento do sistema do capital. Os meios de comunicação social preenchem mais adequadamente, e com grande sucesso, esta função.   
Talvez seja necessário reconhecer que as indecisões do presente em relação às novas tecnologias são sejam resultado de um mero desconforto com o novo e sequer uma satisfação com o passado. Talvez tenhamos de reconhecer que fomos formados com livros e que “la lectura funciona como un modelo general de construcción del sentido. La indecisión del intelectual es siempre la incertitumbre de la interpretación, de las múltiples posibilidades de la lectura” (Piglia, 2005).
Aceitando este princípio geral da leitura, de que múltiplos sentidos sempre são possíveis, que há outras interpretações, poderíamos pensar o emprego das novas tecnologias não discutindo suas vantagens técnicas ou as formas de sua incorporação às práticas pedagógicas, mas revendo mais profundamente que papel resta à escola neste novo quadro da realidade social.
Certamente a escola já teve um papel evangelizador; também já teve um papel de socialização em dois de seus sentidos – o convívio da criança com outras crianças distintas daquelas de seu ambiente mais próximo e a socialização de conhecimentos e informações disponíveis. Quando surgiu o jornal e, depois, a televisão, a escola teve de compreender que informar não era mais a sua função. Mas cabia ainda à escola sistematizar os conhecimentos então já acessíveis nos livros, nas revistas, nos jornais, nas reportagens de televisão etc. Então, a um conhecimento fragmentado e supostamente desorganizado, opunha-se o conhecimento sistematizado nos processos de ensino escolar. E a escola encontrou sua função social explicitável e confessável, porque aquela da legitimação da reprodução do capital – agora feita de formas mais sutis – permaneceu no currículo oculto por que efetivamente passa o estudante. 
 
A internet exige repensar a função social da escola
O uso do computador na escola é aplaudido e saudado de todas as formas. Esta é uma tecnologia bem vista, querida. Uma tecnologia que, segundo o discurso atual, deve estar na escola. Uma tecnologia na escola, não um tecnologia da escola.
Aparentemente – e esta é uma questão de pesquisa em aberto – as tecnologias usadas na escola e produzidas fora de suas demandas parecem não oferecer mais do que apenas algumas poucas dificuldades de adaptação e, sobretudo, parecem não oferecer qualquer perigo para as grandes funções da escola no que concerne à formação dos recursos necessários à reprodução do capital. Por isso estas tecnologias são sempre bem-vindas: o livro didático é também a garantia de que o que se ensina manterá uma uniformidade desejável, não só no que se ensina, mas também no como se ensina. Comenius já antecipava no século XVII o que hoje cumprem os nossos livros didáticos. A carteira escolar, permitindo a visibilidade do corpo do estudante, permite também que se definam as formas do sentar, os comportamentos do corpo na posição adequada à produção acadêmica (e outras produções).
As tecnologias da comunicação de massa adquirem também da escola um valor de verdade: é assim que se diz e compreende o mundo, e como se diz e compreende o mundo corresponde aos valores de verdade que o sistema escolar professa. Por fim, as tecnologias recentes do “power point” permitem a antropomorfização do conhecimento: ele se apresenta por si, e as relações entre eles independem de um sujeito e de sua voz, não resultam da articulação raciocinadora de sujeitos envolvidos e debruçados sobre objetos a conhecer. Ao contrário, as relações (a)parecem desde sempre já estabelecidas, como próprias aos conhecimentos, emergem deles mesmos. Resta contemplar e acompanhar, às vezes com exposições de belos efeitos pelo movimento, cores e formas.

No entanto, aconteceu a internet. Que diferença nos traz a rede mundial de comunicação internética? O que esta tecnologia está oferecendo de especial, que poderia fazer a diferença com os tradicionais meios de comunicação? Quais as relações que se tornarão obrigatórias à medida que a internet se vai tornando acessível e acessada por todos? Em outras palavras, que novidade traz para o papel da escola a existência desta rede mundial?
Sem qualquer sombra de dúvida, também a internet é uma tecnologia surgida fora das demandas do sistema escolar e por isso mesmo poderia ter seu uso automaticamente autorizado pelo sistema de reprodução do capital. Os computadores e a internet responderam, historicamente, muito mais aos interesses da guerra e do comércio, e como objetos destas atividades surgiram muito distantes dos interesses mais imediatos da prática pedagógica. São, na lógica que vimos desenvolvendo nesta distinção entre tecnologias na escola/tecnologias da escola, tecnologias absolutamente insuspeitas.
E, no entanto, a internet se faz suspeita, não porque os alunos muito facilmente podem “lograr” seus professores, baixando da internet a resposta para qualquer trabalho que lhes seja solicitado. A internet se faz suspeita de forma muito mais profunda.
Se os meios de comunicação se tornaram os lugares sociais da distribuição, da circulação das informações, restando à escola contemporânea esta função supostamente sistematizadora destas informações, agora a internet oferece todas as informações organizadas, sistematizadas e acessíveis, de uma forma que jamais poderíamos imaginar possível para qualquer prática pedagógica: praticamente todas as informações estão disponíveis – não só aquelas relativas a acontecimentos recentes no nível internacional, nacional ou regional. A disponibilidade é mais ampla, e os sistemas de pesquisa permitem que em pouco tempo você disponha, a partir de uma palavra-chave, de uma “inundação” de textos a propósito de qualquer assunto.
Cremos que a grande pergunta, agora, já não é mais sobre as informações disponíveis, mas o que fazer com elas. Isto é, já não cabe mais à escola sistematizar os conhecimentos esparsamente distribuídos pelos meios de comunicação – eles já estão sistematizados na rede. Que resta então à escola? E aqui chegamos à questão principal, que provavelmente implica uma mudança radical do papel da escola no mundo contemporâneo.
Antes de rascunhar ideias para a construção de um resposta a esta nova emergência posta pela internet, acrescentemos mais um fato que a torna extremamente suspeita: graças à internet podemos cotejar discursos, antes esparsos e alguns inacessíveis. Sobre um mesmo fenômeno, inúmeras são as vozes acessíveis a nossa escuta. Cotejar uma e outra voz permite ver que a verdade não está num lugar, mas é uma construção social e histórica. Este um perigo enorme para os processos de legitimação do estabelecido!
A internet nos oferece tal possibilidade de transitar por discursos, e num trânsito livre e quase incontrolável, que mesmo estando em rede, conectado, em conversa com outros sujeitos distantes, não estamos acostumados a poder tratar de tudo e de diferentes formas. Cremos que aquilo que hoje podemos analisar como um processo de interlocução um tanto artificial, com a repetição das mesmas perguntas a cada vez que dois grupos de Janelas pra o Mundo se encontram pode ser atribuída precisamente a esta nossa inexperiência de liberdade. E certamente com investimento nesta liberdade rapidamente as crianças aprenderão que poderá usar a internet de forma distinta nas novas interlocuções possíveis, abandonando o modelo a que estão acostumadas. Aliás, como mostra Vidotti em seu artigo neste volume, rapidamente já aparecem as manifestações amorosas, a explosão do corpo pela curiosidade sexual das crianças em conversa e em busca de namoros possíveis.
Na medida em que o Projeto Janelas para o Mundo não se dispõe a ensinar para que todos aprendam, recupera da experiência vivida com os outros e com as coisas aquilo que mais nos ensina: aprende-se ao longo da vida, durante a vida inteira, e lidar com a tecnologia como fazem garotos e garotas envolvidos neste projeto é muito mais do que agir para que as periferias tenham uma suposta “alfabetização”  digital. Para além das tecnologias, estão os sujeitos que teclam, que veem e se deixam ver pela webcam: há aqui um investimento na constituição de subjetividades novas que compreenderão, seguramente, o mundo de uma forma diferente daquela a que nós estamos habituados. Porque podem cotejar palavras, porque podem abrir outros horizontes, porque podem se encontrar num momento em que, num jogo lúdico, aprendem sem a preocupação com a aplicação e avaliação sobre o vivido. É com esta liberdade e para esta liberdade que Janelas para o Mundo pretende educar, no sentido mais amplo que tem esta expressão.
Estas possibilidades oferecidas pela internet nos permitem retonrar à lógica da leitura: os sentidos são múltiplos, são construções e, portanto, mais do que certezas o de que dispomos são de possibilidades. Os horizotnes de mundos possíveis se ampliam à medida que nossas construiçõ4es de sentidos se tornam mais polifônicas. Com a internet, o universo se saturou de textos, e sua acessibilidade nos permite elevar a enésima potência as compreensões possíveis. Por isso hoje, mais do que nunca, podemos nos inspirar na lógica da leitura para assumir que

En esse universo saturado de libros, donde todo está escrito, sólo se puede reler, ler de otro modo. Por eso, una de las claves de ese lector inventado por Borges es la libertad en el uso de los textos, la disposición a ler según sua interes e su necesidad. Cierta arbitrariedad, certa inclinación deliberada a ler mal, a ler fuera de lugar, a relacionar series imposibles. La marca de esta autonomia absoluta del lector en Borges es el efecto de ficción que produce la lectura.
[…]
El lector como criminal, que usa los t4extos en su beneficio y hace de ellos un uso desviado, funciona como un hermeneuta selvaje. Lee malo pero solo en sentido moral; hace uma lectura malvada, rencorosa, un uso pérfido de la letra. Poderiamos pensar a la critica literária como un ejercicio de ese tipo de lectura criminal. Se lee un libro contra otro lector. Se lee la lectura enemiga. El livro es un objeto transacional, una superfície donde se desplazan las interpretaciones. (Piglia, 2005: 28 e 35)

Neste universo de textos, resta à escola ser o tempo de possibilidade de leituras transgressoras, ser o tempo de aprender a refletir sobre um cotidiano que nos assombra e em que vivemos a pressa do se passa sem transformar o que se passa em experiência de que se possam extrair lições, ensinamentos. Hoje, mais do que nunca, a escola terá que se inspirar na lógica da leitura para reencontrar os seus caminhos de reflexão sobre os acontecimentos vividos, tornando-os superfícies para a realização de aprendizagens.
Fazer isso implica outra lógica, não mais aquela da informação e da organização sistemática das informações – que está disponível na rede da internet – mas aquela da criação de sentidos. Isso aproximaria o fazer pedagógico do fazer estético, o primeiro destes fazeres caminhando no mundo ético, o segundo caminhando no mundo artístico, para que enfim consigamos encontrar instrumentos para realizar a principal tarefa a que fomos chamados nestes tempos: “a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana”. É por isso que também no âmbito educacional, as soluções “não podem ser formais; elas devem ser essenciais”. Em outras palavras, elas devem abarcar“ (Mészáros, 2005:45).
 
 
Nota

(1)  
Este texto foi escrito como parte de nossa participação no projeto “Janelas para o Mundo” coordenado pelo Dr. Bernd Fichtner e por Maria Benites, com sede na Universtät Siegen (Alemanha), que colocou em contato diferentes culturas, em contato através da então Web-Cam, participando um grupo de jovens tucanos (Mato Grosso); alunos de uma escola de periferia de Cuiabá; alunos da escola na ocupação urbana Bairro Oziel, em Campinas; alunos de uma escola da Extremadura Espanhola (Alcalá) e alunos de uma escola alemã, em Siegen. Através da internet, estes jovens mantinham contato semanal, discutindo temas que lhes aprouvesse, acompanhados de tradutores. A Petrobrás financiou uma torre de retransmissão na aldeia tucana de Mato Grosso. O DAAD financiou as instalações de computadores nas escolas envolvidas e a CAPES financiou a parte brasileira do projeto. Junto ao relatório do projeto que teve duração de dois anos, de pesquisa-ação, foram publicados textos dos professores participantes do projeto.  Agradecemos ao Prof. Bernd Fichtner pela tradução das citações em alemão neste estudo. Este texto é parte deste conjunto, e foi publicado em Benites, Maria et allii. Janelas para o mundo. Diálogo com outras vozes. Porto Alegre : Livraria do Arquiteto, 2006.
 
 
Referências bibliográficas
Alt, Robert. Bilderatlas zur Schul-und Erziehungs Geschichte. Berlim : Volk und Wissen Volkseigner Verlag, 1966.
Fichtner, Bernd. Lernen und Lerntätigkeit. Philogenetische, ontogenetische und epistemologisches Studien. Marburg : BdWi-Verlag Marburg, 1996.
Mészáros, István. A educação para além do capital. São Paulo : Boitempo, 2006.
Piglia, Ricardo. El último lector. Barcelona : Editorial Anagrama, 2005.
Vidotti, Alessandra. Reflexões sobre o dia-a-dia dos encontros. In. Maria Benites et alii. Janelas para o mundo. Um projeto de pesquisa e ação. Porto Alegre : Livraria do Arquiteto, 2006.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.