Sobre marchas, mentiras, margens e medos (por Mara Emília Gomes Gonçalves)

Voltados que estamos para nossas próprias mazelas, não temos dado atenção devida ou necessária a uma importante movimentação que tem ocorrido em terras norte-americanas: a ação chamada de “Marcha pelas nossas vidas”, cuja principal bandeira é o desarmamento da população, organizada por jovens secundaristas, as principais vítimas de massacres e crimes de ódio no país.

Neste momento, em que saem às ruas pedindo o desarmamento americano, é preciso entender que o recrudescimento da xenofobia, misoginia, homofobia e racismo, tiveram sua origem na eleição de Trump, resultado de um desejo de mudança.  Após uma política interna de apoio às minorias, atenção à diversidade e garantia de direitos civis, praticada por Barack Obama, uma parte da sociedade entendeu que a crise era resultado dessa postura e não de uma saturação do modelo econômico imposto em grandes medidas pela política internacional americana.  O que nem de perto é verdade, mas parece aplacar a sanha dos setores conservadores e bélicos. É muita estupidez, mas parece muito confortável para alguns assumir uma postura conservadora: “América para os americanos”, que originalmente significa toda a américa latina para os estadunidenses.

Algo parecido acontece no pensamento colonizado de grande parte da classe média brasileira, o pensamento simplista e equivocado teria uma tradução livre assim: Farinha pouca, meu pirão primeiro. Ainda que isso signifique a fome de muitos ou morte de outros. Sabe as pessoas que têm um sítio e uma casa e pensam que o comunismo vai tomar esse sítio para a reforma agrária? Pois é. Sabe aquela pessoa que é funcionária pública e defende o fim dos impostos ao invés de alíquotas progressivas, ou aqueles que acham que o problema da juventude com depressão é falta de surra? Ou que os negros não merecem políticas de ação afirmativa? Ou que mulheres são mortas e estupradas porque fizeram por merecer? Que professores não deveriam ter direito a férias e recesso? Ou que é justo uma casta ter auxílio moradia enquanto muitos nem teto ou refeição garantidos; ou que bandido bom é bandido morto, desde que seja preto e pobre.

Aqui, discursos de ódio apontam também para limitação em enxergar as causas globais, profundas e coletivas, da crise econômica e política que ajudariam a compreender o avanço das questões de violência e falta de segurança.  O resultado são pautas diversionistas e conservadoras com a finalidade de imputar sob grupos de minorias a responsabilidade por todos os problemas e a punição por esses problemas.

Não tem lógica nenhuma.  E a falta de razão é alimentada e aplaudida por quem quer que essa seja a condição: irracional, brutal, próxima da barbárie.  Do contrário como não interpretar que crianças violadas em seus direitos básicos são mais passiveis de tornar-se violentas?

Como se não pudéssemos discernir sozinhos, não nos oferecem dados e informações para a reflexão, ou pior direcionam nossos humores para os resultados desejados, ao tempo em que exigem de nós posições estanques, dividindo o mundo entre o certo e o errado, o bom e o mal, o novo e o velho, o azul e o vermelho, a esquerda e a direita.  Lembro sempre do exemplo do copo com água até a metade, nem cheio, nem vazio e ao mesmo tempo cheio e vazio. Possibilidades várias.

Nesses momentos sempre gosto de recorrer a literatura, O conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, nos oferece uma imagem rica, e significante do nosso ato de muitas vezes não notarmos que existe uma margem invisível, compreendida entre os limites. Vejamos essa passagem:

“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.” (In Rosa, João Guimarães. Primeiras Estórias. Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 1988, pág. 32.)

A riqueza deste trecho é imensurável. Como pode alguém não voltar sem ter ido a nenhuma parte? Ou aquilo não havia, acontecia… Mas quero destacar dois aspectos fundamentais para os dias atuais, senão para a vida: o primeiro é a quebra da invisibilidade, e o segundo a resiliência. Neste último, a naturalização de quem se sabe sujeito da marginalização e que, por isso mesmo, assume para si todo o pesado fardo, inclusive de morte em vida. É como se o personagem central tivesse sido impelido pelo próprio destino a corroer o medo por dentro, não é o querer, é a necessidade quem o leva ao enfrentamento da ordem.

Impossível não associar essa figura humana demais, que se oferece em sacrifício, compreendendo o que a muitos não é dado entender, ou sequer enxergar, com nossas lideranças dos direitos humanos, e até mesmo com o ex-presidente Lula que se agiganta colocando-se à disposição da prisão, e da morte. Aqui, vale lembrar que não faço propriamente uma leitura crítica, muito mais uma apreciação comentada.

Ainda nesta narrativa de Rosa nos identificamos ao final com o filho que deseja substituir o pai na sua sina, mas temos medos vários. Não continuarei para não dar spoiler do final do conto, e para não alimentar aqueles que querem conforto. Acrescento apenas que os medos, assim como as paixões, podem nos paralisar ou nos oferecer força.

Nesse sentido, as marchas americanas em favor do desarmamento servem de exemplo, uma vez que a cultura americana (e por vezes o sonho americano) fomentou a corrida armamentista, ocultando aspectos negativos em detrimento dos dividendos comerciais e políticos, e são os mais jovens agora que pleiteiam as mudanças uma vez que são eles que mais perdem vidas.  Ponto para a força dada pelo medo da morte que se avizinha.

No Brasil, em alguns centros urbanos, surge um movimento chamado de “Vidas negras importam”, em uma manifestação de fechamento da Radial Leste em São Paulo uma das faixas continha os dizeres: “perdemos muito, inclusive o medo”. Também aqui a força do medo refaz condições.

É esperado que o movimento negro, organizado ou não, sob uma pauta identitária ou não, dê uma resposta para a nossa sociedade, pois temos em curso o genocídio deste povo. Se a pobreza tem cor, e sabemos que tem, ela é quem delimita que as baixas são todas de um mesmo lado, vestidos de todas as cores, fardados, descamisados, uniformizados, sem teto, nas escolas, nas favelas, sem terra, jovens, mulheres, e Marielles.

O risco de acirramento dos ânimos é que para alguns a perda de cifrões pede política econômica mais austera, e para outros a perda dos seus, e das suas próprias vidas, desnudam a condição de que não há mais nada a perder.

Se existe uma oposição real é esta: de um lado não morre quem manda matar, e do outro, ao enfrentar o medo se descobre, que só morre quem se deixa morrer.

Mara Emília Gomes Gonçalves escreve neste Blog às quintas-feiras.

 

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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