Este é um livro para se guardar e volta a ele toda vez que um disparate acontecer no governo Bolsonaro ou naquele, improvável, que vier a substituí-lo caso ele não atravesse os quatro anos de mandato.
Aqui temos a história contada enquanto ela acontecia. Os fatos marcantes do ano em que a maioria da população preferiu participar da construção de um regime autoritário do que tentar continuar numa democracia que nos últimos anos fez um ensaio de transformar o Brasil numa nação e não apenas num território de poucas pessoas e milhares de subalternos, alguns passando fome ou trabalhando em regime de escravidão. Foi o que decidiu a maioria, ou por voto direto ou por omissão ou por ressentimento de alguns líderes políticos como Ciro Gomes ou a minúscula – em todos os sentidos – Marina Silva e, acima de todos, o vaidoso neoliberal Fernando Henrique Cardoso.
O que mais ensina o autor aos que ensaiam na crônica é a condensação que faz com as informações de que dispõe. Ao contrário do que se poderia esperar de textos escritos antes da poeira baixar, a técnica de Mário Magalhães é transformar um fato em tema, e partir do tema ir aos arquivos do passado e do persente para dar ao fato um contexto mais amplo, mas sem deixar de tomar posições sobre o acontecimento que deu início ao que se pode chamar de pesquisa do cronista.
Neste sentido, os textos que compõem o livro ultrapassam o gênero porque também fazem história. Trata-se de um gênero em construção, filho da crônica porque se debruça sobre um acontecimento do presente; filho da narrativa histórica porque engancha o presente a séries do passado, articulando semelhanças e diferenças entre o hoje o ontem histórico; mas também filho da política porque todos tratam de fatos políticos. Tem um parentesco ainda com a reportagem, no sentido de que esta também toma um fato e levanta seus contextos próximos.
Insisto que neste caso é mais importante, como em muitos outros, estar atento às relações intergenéricas que gestam, nas diferentes esferas da comunicação, os gêneros discursivos adequados ao projeto de dizer e à relação interlocutiva pretendida: o autor fala do presente não para registrá-lo como fonte futura de historiadores. Ele fala do presente e ao mesmo tempo escreve história, ao militar politicamente sem contudo cair em partidarismos.
Nestes textos, Mário Magalhães mostra o quanto está informado e como são diversas as suas fontes, desde livros de história até recados e mensagens nas redes sociais, de modo que o leitor de seus textos tem sobre cada tema uma rede que recobre com seus diferentes nós as reações dos sujeitos face às interpelações ideológicas a que se encontra submetido.
Tomemos um exemplo. Em “Pra mim chega”, inicia-se o texto referindo-se à comovente foto publicada em fevereiro (de 2018) em que um pai, aritxa Iwyraru Karajá velava o túmulo de seus dois filhos que se suicidaram entre 2012 e 1026. Este fato o leva ao tema do suicídio, de que traz inúmeros dados e estudos, e também outros suicídios. Obviamente não faltaram referências a Virgínia Woolf, a Getúlio Vargas e ao reitor da UFSC, o Prof. Luiz Carlos Canceller de Olivo. Dentro do tema, a questão que discutirá será aquela do jornalismo: noticiar suicídios produz o efeito Wether, isto é, o aumento do número de suicídios logo após o noticiário. Por outro lado, é adequado não informar? Neste texto o autor acaba por colocar o leitor em outro quadro distinto para revisar sua compreensão dos suicídios, trazendo dados da economia que levam ao “pra mim chega!, de modo que inúmeros suicídios, como o do reitor da UFSC, retratam uma época como o suicídio de Stefan Zweig retratou a época do nazismo alemão, ainda que sua morte tenha ocorrido em Petrópolis, longe de Hitler e do furor nazista de que escapara para o Brasil.
O livro é composto por um longo prólogo que situa o ano de 2018, correlaciona-o a 1968 e aos anos anteriores à ditadura militar. Depois se seguem as 43 crônicas que em certo sentido comprovam empiricamente o que defendeu no prólogo: 2018 foi “um ano que tão cedo não vai terminar.
Nada melhor para ler, para lembrar e para deixar para os filhos para que compreendam o que aconteceu quando a ameaça que temos pela frente é a da censura ao rela em benefício de uma narrativa fabricada segundo a voz de um clã que foi elevado à presidência da república graças às ações de um judiciário partidarizado e de uma elite política e econômica mesquinha e burra.
Referência. Mário Magalhães. Sobre lutas e lágrimas. Uma biografia de 2018. Rio de Janeiro: Editora Record, 2019.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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