Ao ler hoje a crônica de Ronaldo Cagiano sobre a morte de Nelly Novaes Coelho, e do estarrecedor desbaratamento de seu acervo bibliográfico, juntei-me à desolação e lembrei minha própria desolação.
Numa viagem a Vitória, a convite do Centro de Educação da UFES, fui ao prédio de Letras da universidade rever amigos. E descubro, feliz, uma homenagem que desconhecia: havia três salas do programa de pós-graduação com os nomes de Ingedore Koch, Sírio Possenti e outra em meu nome.
Tinha eu um acervo em minha antiga casa, de mais de 2.500 volumes. Resolvi doá-lo à UFES, e entrei em contato com os amigos, que através do programa de pós-graduação, enviaram-me “vales” de correio para postar 16 caixas de 30 quilos cada, contendo o acervo, constituído de:
- coleção de mais ou menos 800 dissertações e teses, todas com anotações de leitura e com as arguições feitas nas respectivas defesas;
- todas as revistas da área que assinei ou que recebi, algumas coleções completas até a data da doação, além de inúmeras revistas estrangeiras;
- alguns livros: sempre que saía a tradução de algum livro, passava a usá-la em minhas aulas para facilitar a vida de meus alunos, e guardava os originais neste acervo;
- parte da minha história de vida acadêmica, e de minha mulher Corinta Maria Grisolia Geraldi: tínhamos o hábito, desde o mestrado em meados dos anos 1970, de juntar as cópias de textos e organizá-las na forma de um volume por assunto, com índice dos textos que compunham a coletânea;
- alguns documentos, dentre os quais um muito estimado por mim: a transcrição revista pelos participantes, de todas as reuniões da comissão nacional sobre o ensino da língua portuguesa, nomeada em 1985, constituída por Antonio Houaiss, Celso Cunha, Abgar Renault (presidente), Fábio Lucas, Aurélio Buarque de Hollanda, Celso Luft, Magda Soares, Ítala Wanderley, Raimundo Jurandir e eu. Era um documento que permitiria alguma pesquisa, verificando as posições destes intelectuais sobre os temas tratados.
Obviamente este pequeno acervo não tinha o valor do acervo de Nelly Novaes Coelho! Mas sempre era um acervo de um professor universitário.
Pois voltei no ano passado à UFES, agora a convite da Associação Nacional de Alfabetização, para participar de seu primeiro Forum Nacional. Havia sido convidado a escrever um texto sobre minha arguição da tese de livre docência de Maria do Rosário Mortatti, para um volume em homenagem aos 20 anos da publicação da tese (Os Sentidos da Alfabetização). Fui procurar a tese para rever anotações, encontrar a arguição escrita que sempre guardei dentro dos trabalhos analisados.
Fui à biblioteca do programa, encontrei uma solícita funcionária que havia trabalhado no acervo transferido para a UFES. Na biblioteca não encontrei nada do que foi meu: nem livros, nem teses e dissertações, nem documentos, nada! Mas havia uma sala fechada, um depósito de material ainda não catalogado. Gentilmente fui acompanhado à sala: não encontramos nada.
Ao sair desta sala, um tanto desolado, encontro um colega e amigo, professor da UFES (Santinho) que me informou: o acervo havia sido descartado. Ele mesmo tinha levado alguma coisa para casa, e se prontificou em verificar se por acaso tinha a tese de livre docência que estava procurando. Se achasse, me enviaria!
Saí do campus da UFES desolado: uma parte de minha vida acadêmica havia sido descartada. Tudo será descartado um dia, sei disso. Mas imaginava que não veria o descarte em vida. Já havia resolvido desapegar-me eu mesmo, e vendi para a Universidade Estadual do Oeste do Paraná quase 3.000 volumes de minha biblioteca, incluindo obras raras do séc. XVIII e XIX. Pois não é que este acervo está num depósito, também ele, a que os estudantes não têm acesso!!! Acervo inútil, ainda que comprado com verba pública. Penso que as próximas formas de desapego devam ser diretamente a fogueira, tipo quem queima bruxas, porque livros podem ser tão perigosos ou mais do que bruxas.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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