O mínimo que se pode dizer sobre este livro, para o leitor contemporâneo e não familiarizado com a História da Argentina, é que encontrará na leitura dificuldades para definir os diferentes tempos a que remete a narrativa.
Acontece que o “tempo atual” da primeira narrativa seria sob o primeiro governo de Perón (1946-1955) pelas inúmeras remessas que a ele aparecem no texto; mas no final, quando uma das personagens centrais da história decide ir para a Patagônia, fala-se na queda no governo de Irigoyen (possivelmente de seu segundo governo, entre 1928-1930). E há também outra complicação: uma remessa explícita à perseguição ao General Lavalle feita pelas forças de General Oribe, na derrota dos “unitários” para as forças dos “federais” (uma remessa aos inícios do Século XIX). Assim, o leitor deverá lidar com estes diferentes tempos, pois o enredo da história é atravessado pelas recuperações memorialísticas das famílias Acevedo e Olmos.
De forma explícita, o romance faz menção ao que o motivou: inicia-se com o fragmento de uma crônica policial publicada a 28 de junho de 1955 por La Razón, dando conta de uma tragédia: Alejandra teria matado seu pai, Fernando Vidal, e depois “espalhou gasolina sobre o próprio corpo e ateou-lhe fogo”. Fato verídico, a partir do qual o romancista constrói todo um passado que será efetivamente o enredo do romance.
A primeira cena é do encontro de Martín e Alejandra. Martin chegara do interior, era estudante, perdido em Buenos Aires. Está sentado num banco do Parque Lezama, sente-se observado: é Alejandra. Mas esta cena que parece marcar o início do romance é, no entanto, o que narra Martín a seu amigo Bruno. E toda a primeira parte é esta rememoração de Martín (já retornado da Patagônia?) sobre sua relação com Alejandra, seus encontros na casa de Barracas, uma velha mansão em ruínas da família Acevedo-Olmos, onde o avô Pancho recorda o que lhe contou o Alferes Celedonio Olmos, das forças de Lavalle e de sua fuga para a Bolívia.
Há, portanto, um espaço muito específico: a casa de Alejandra, a casa da família aristocrática decadente, incapaz de ações práticas de sobrevivência num mundo que se distanciara quase um século do tempo que eles ainda viviam mentalmente. A casa, e mais especificamente “o Mirador”, uma espécie de continuidade da mansão, mas dela separada, que era habitada por Alejandra. Na casa, permaneciam o avô, um tio louco que vivia tocando a mesma frase em sua clarineta e uma empregada.
Martín apaixona-se por Alejandra, mas a relação entre eles nunca se esclareceu, frequentemente ela desaparecia, parecia ter outra vida (por uma referência ao final do livro, dormiria também por dinheiro com outros homens), tinha inúmeras relações com pessoas de níveis sociais muito elevados, como mostra a tentativa de ajudar Martín, que ficara desempregado, a arrumar um emprego com um grande empresário Molinari, com quem Alejandra se relaciona (na entrevista de emprego, Molinari chamará Alejandra de Drucha). Tinha Martín 19 anos, perdera o emprego de revisor de provas de uma pequena tipografia. Obviamente, não conseguirá o emprego, mas escuta toda uma concepção de sociedade que lhe sermoneia o empresário, de que extraio a seguinte passagem:
– Como lhe estava dizendo em meus bons tempos também fui socialista e até mesmo anarquista – […] – e aqui o amigo Pérez Moretti não me deixará mentir, pois juntos passamos por muita coisa. Por outro lado, não vá acreditar que nos envergonhamos. Sou dos que pensam que não é mau que a juventude tenha em seu momento ideais tão puros. Terá tempo para perder logo essas ilusões. Em seguida a vida nos mostra que o homem não é feito para essas sociedades utópicas. Não há sequer dois homens iguais no mundo: um é ambicioso, o outro é desprendido; um é ativo, o outro é vagabundo; um quer progredir, como o amigo Pérez Moretti ou eu, outro não se importa em passar toda a sua vida como um pobre coitado. Enfim, para que continuar? O homem é por natureza desigual e é inútil pretender fundar sociedades onde os homens sejam iguais. Ademais, observe que seria uma grande injustiça: por que um homem trabalhador há de receber o mesmo que um vagabundo? […]
Os anos, a vida que é dura e desapiedada, nos convencem de esses ideais, por nobres que sejam, não são feitos para os homens tais como são. São ideais imaginados por sonhadores, por poetas, quase diria eu.
O discurso do empresário seguiu neste tom, passou a defender a base da sociedade, a família e a necessidade, em benefício da família, de uma válvula de escape: “ou se tem uma boa prostituição controlada ou a sociedade se defronta, cedo ou tarde, com o gravíssimo perigo de que suas instituições básicas possam vir abaixo”.
Martín sai do prédio da empresa para vomitar… e desempregado.
Toda esta primeira parte do romance, que focaliza a relação Alejandra/Martín, é entremeada por extratos de duas outras narrativas: uma relativa aos tempos da guerra do século anterior; outra da vida do próprio Bruno, que ouve Martín, e que também tivera relações com a família Vidal-Olmos.
A segunda parte do romance é pura alegoria: trata-se do Informe de Fernando Vidal (pai de Alejandra) sobre sua investigação a respeito do que chama de Seita dos Cegos. Aqui sonhos e realidades se confundem. Fernando Vidal fora anarquista, fora chefe de quadrilha de assaltos a bancos, chefe de bandoleiros… Ele desconfiava que os cegos comandavam o mundo. Investigar isso se tornou sua obsessão. E antes de morrer, escreve este “Informe” – a que a notícia do jornal que motiva o romance faz referência abrindo a possibilidade de diferentes interpretações da tragédia da casa de Barracas. Algumas leituras possíveis para esta longa parte do texto: 1. Realismo mágico, em que se misturam sonhos, obsessões, realidades sem qualquer pretensão de remessas verossimilhantes; 2. Uma alegoria em que cegos seriam as pessoas que fazem o sistema andar, como autômatos, dirigidos sem saberem, por uma organização secreta de poderosos, como se o mundo ‘mortal’ fosse de marionetes e os reais agentes sempre escondidos açambarcando tudo; 3. Uma remessa a um mundo psicológico de uma personagem de caráter mau, que em sua viagem pela própria consciência desce aos infernos (numa remessa então quase óbvia a Dante).
A terceira parte do romance agora é relatada por Bruno. Bruno se criara no interior, vizinho e amigo de Fernando Vidal. Órfão, sempre teve na mãe do amigo sua miragem do que seria uma mãe. Reencontram-se em Buenos Aires quando Bruno segue para a cidade para estudar. Bruno, em seu tempo, também frequentou o Mirador na mansão de Barracas, mas agora a relação é com Georgina (que será a mãe de Alejandra). No entanto, esta é submissa e absolutamente hipnotizada por seu primo Fernando Vidal…
Assim, Bruno apaixonado não consegue realizar seus sonhos e percebe esta submissão de sua amada a um sujeito que considera mau caráter e que efetivamente, nesta parte do romance, aparece como um vigarista e um niilista que se escondeu sob a capa de anarquista para ganhar dinheiro – que no entanto não aparece como um homem rico.
É nesta terceira parte que emerge com mais força a narrativa da fuga dos comandados de Lavalle para a Bolívia, a morte de Lavalle em Juyjuy, o pequeno grupo que sobrou de 145 cavaleiros que levam o corpo de Lavalle para não deixar que Oribe o exiba como troféu. Aqui se misturam os tempos, mas as narrativas estão marcadas tipograficamente. Também nesta parte aparecerá a viagem de Martín, acompanhando um caminhoneiro para a Patagônia fugindo de tudo o que viveu em Buenos Aires e que não conseguiu jamais compreender, como se depreende da primeira parte do romance e de seu relato de seu caso com Alejandra para o amigo Bruno.
Como não poderia deixar de ser, num livro assinado por Ernesto Sábato, não faltariam reflexões sobre paixões políticas, sobre estrutura social, sobre cultura, sobre literatura. As remessas à literatura clássica são constantes. Mas também a dois argentinos em particular: Borges e Roberto Arlt.
Transcrevo um parágrafo em que Bruno comenta Borges. Martín e ele caminhavam juntos para um encontro com o Padre Rinaldini (personagem bem secundário no romance). No caminho passam por Borges…
– Você o julga um grande escritor? Bruno pensou um bocado.
– Não sei. Só estou certo de que sua prosa é a mais notável que hoje se escreve em castelhano. Mas é demasiado preciosista para ser um grande escritor. Você pode imaginar Tolstoi tratando de deslumbrar com um advérbio quando está em jogo a vida ou a morte de uma de suas personagens? Mas nem tudo é bizantino nele, não vá crer nisso. Há algo muito argentino em suas melhores coisas: certa nostalgia, certa tristeza, metafísica…
Andou um pouco em silêncio. – Em realidade diz-se muita bobagem sobre o que deve ser a literatura argentina. O importante é que seja profunda. Tudo o mais vem por acréscimo. E se não é profunda é inútil que se ponham gaúchos os compadres em cena. O escritor mais representativo da Inglaterra isabelina foi Shakespeare. No entanto, muitas de suas obras nem mesmo se passam na Inglaterra.
Há inúmeras reflexões das personagens, de modo que se pode falar também que este é um romance “filosófico”. Mas estas reflexões, carregadas de pessimismo, também são em algumas passagens extremamente irônicas:
Ao sair do bar, e depois de fazer minha visita noturna à pensão, sobre a Plaza del Once, contemplava ainda o grande cartaz que anuncia as massas Santa Catarina, e embora não recordasse quem fosse Santa Catarina não me pareceu inviável que houvesse sofrido o martírio, já que o martírio foi sempre o fim quase profissional dos santos; e então não pude deixar de meditar sobre essa característica da existência humana que consiste em que um crucificado ou um esfolado vivo com o tempo se converte em uma marca de massas ou de conservas em lata.
Referência: Ernesto Sábato. Sobre heróis e tumbas. Tradução de Janer Cristaldo. São Paulo : Círculo do Livro, s/data.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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