No ensino de línguas, dois aspectos da ortodoxia escolar têm estado constantemente na pauta de discussões: a questão do ensino da gramática e a questão dos objetos de leitura a serem privilegiados no ambiente de sala de aula. O objetivo deste trabalho é retomar estes temas a partir de uma perspectiva muito particular, aquela relativa à constituição dos objetos de ensino em língua materna.
O ensino e a aprendizagem da “gramática” têm sido tradicionalmente entendidos como caminho de correção da expressão linguística dos educandos, pressupondo-se que: (a) conhecer a descrição das estruturas linguísticas – do vocábulo à sintaxe (e mais recentemente chegando ao texto, pelo domínio de categorias da análise textual como coesão, coerência, informatividade, etc.) – permitiria um melhor desempenho linguístico; (b) conhecer algumas normas de combinação de recursos expressivos segundo o uso em determinada variedade levaria à rejeição de normas relativas a uma variedade linguística não ‘stadard’ e de domínio do alunos em suas falas e escritas.
No que concerne ao primeiro pressuposto, desse meados da década passada inúmeros trabalhos de linguistas brasileiros [e mesmo de gramáticos] têm apontado para seu equívoco, independentemente de defenderem ou não o ensino da descrição da língua na escola (por exemplo, Ilari, 1985; Luft, 1985; Bastos & Matos, 1985, para citar apenas textos de um único ano!), a questão reaparecendo de forma mais esparsa em trabalhos desta década (Possenti, 1996; Britto, 1997). No que concerne ao segundo pressuposto, a discussão mais frequente diz respeito a diferentes posturas metodológicas, em que se contrapõem, grosseiramente, defesas antagônicas: o conhecimento explícito de regras normativas ou o conhecimento implícito das mesmas regras extraídas pelo estudante em seu convívio com as práticas linguísticas (por exemplo, Luft, 1985; Geraldi, 19874; Dacanal, 1985; Back, 1987; Carvalho, 1988). Não pretendo retomar aqui estas discussões, mas apenas chamar a atenção para dois aspectos levantados por Britto (1997) em sua retomada do assunto: 1. No contexto de grande parte dos trabalhos, a noção de “norma culta” acaba remetendo à modalidade escrita, corrente em órgãos da imprensa e não à modalidade oral; 2. Mesmo nos trabalhos que têm proposto um estudo gramatical com base nos textos produzidos por alunos, (por exemplo Geraldi, 1984, Gallo 1992) acabam exigindo o conhecimento de regras normativas, um pouco mais elásticas em relação ao padrão escrito.
A segunda grande questão – o ensino da leitura – passa por discussões a propósito da seleção de gêneros, de textos e do acesso ao livro. Desde a década de 1960 domina o ponto de vista de que é necessário diversificar os gêneros de discursos em circulação na sala de aula, incluindo-se desde propagandas, histórias em quadrinhos, notícias e reportagens jornalísticas até a presença hoje quase tímida do gênero poético. Embora pareça ser uma questão ultrapassada, a denúncia de que o nível de profundidade dos chamados exercícios de “leitura e interpretação” não vão além da superfície textual ainda não surtiu o efeito de alterar as práticas escolares. Novamente, meu objetivo não é retomar tais discussões, presentes na literatura específica sobre a questão (por exemplo, Zilberman, 1982; Leite, 1983; Zilberman e Silva, 1988; Kleiman, 1989, Silva, 1995).
Como o título deste texto remete à constituição de objetos de ensino, adianto que não vou tematizar as relações entre escola e sociedade, seguindo a trilha das discussões nos estudos de sociologia da educação. O contraponto mais importante destas discussões diz respeito à antítese reprodução/transformação, uma e outra concepção atribuindo diferentes papéis para a escola no contexto social. Seguramente, dois autores são fundamentais para a compreensão dos diferentes pontos de vista. Bourdieu de um lado, Paulo Freire de outro.
Minha preocupação diz respeito a condições de produção, concretamente constritoras da atividade de ensino na sala de aula, sem, contudo, explicitarem-se como condições que a prática imediatamente expõe. Trata-se de aproximar as nossas questões cotidianas – da prática e da reflexão sobre o ensino de língua materna – ao projeto mais amplo de ciência moderna, na qual nos formamos e com base no qual temos agido no ensino.
De dentro da sala de aula
Tomando como ponto de partida para a reflexão dois textos produzidos por estudantes em diferentes momentos de escolaridade e em diferentes condições de produção, poderemos extrair indícios do processo de escolarização e suas consequências. Devo os dois textos a pesquisas independentes. O primeiro é parte do “arquivo” de textos do projeto “A relevância teórica dos dados singulares na aquisição da linguagem escrita” (Abaurre et alii, 1997). O segundo é parte do corpus de dissertação de mestrado de Cristiane Duarte (1998).
O primeiro texto é de um aluno no segundo ano de escolaridade, em que se narra a visita – verdadeira ou fictícia, não importa aqui – a um parque e se expõe um desejo (ter um pequeno animal doméstico, um periquito), em cuja composição sobressai o emprego do discurso direto entre as personagens, principalmente o narrador e o guarda. Apesar das dificuldades de manuseio da escrita, pode-se acompanhar toda a história de um desejo (e sua realização), inclusive com momento de sobressalto, quando o narrador é acusado de ladrão. É importante salientar que o leitor consegue ‘decifrar’ a escrita – e construir uma compreensão – até a altura do texto em que narrador chegaria em casa carregando uma gaiola com um periquito. O possível diálogo entre a personagem que narra e a mãe acaba ficando praticamente incompreensível (talvez porque neste momento narrador e autor se confundam, fato que uma análise psicanalítica poderia explorar). Transcrevo o texto na ortografia original, e até onde é possível acompanhá-lo:
Uauquelido olha sespobri animasi que lido seslido animas ai buqueria pelomenos um pequeno periquitinho
oseu guarda osior poderia midarum periquitinho
ocoisau um na posotidar nium animas como é seunome omeunome é Marcelo
o Marcelo, o Marcelo seufo tidar um periquiriqto toda mundo desse colégio vai quer si você não cotar a elis Eupso atetida um periquito cutido se vo ce mipromete que cuidara bei eu tidava maiaiol você Marcelo jura quecuida beidele ele sabi cata
eitão podileva o periquito seu guarda muito obrigado
olhai um meninu catano operiqito pega-ladrão perai eudei operiquito a ele abrio inta podeu
mamãe veive o ames que eu vgalidagoto que vai (ilegível) diva vai e vive nogala umperiquito (ilegível) vai me trata beidele
fim
(Auau! Olha esses pobres animais que lindo esses lindos animais. Ai, bem que eu queria pelo menos um pequeno periquitinho.
– Oh seu guarda, o senhor poderia me dar um peritinho?
-Oh coisa, não posso te dar nenhum animal. Como é seu nome?
– Meu nome é Marcelo
– Ô, Marcelo, o Marcelo se eu for te dar um periquito todo mundo desse colégio vai querer. Se você não contar a eles eu posso até te dar um periquito (cutido?) se você me promete que cuidará bem eu te dava, mas você Marcelo jura que cuida bem dele? Ele sabe cantar.
Então pode levar o periquito.
– Seu guarda, muito obrigado.
– Olha aí um menino catando o periquito. Pega ladrão!
– Peraí, eu dei o periquito a ele (abrio inta podeu)
– Mamãe vem ver o meu que ganhei do guarda que vai (ilegível) daí vai viver na gaiola um periqueito (ilegível) vai me tratar bem dele.
Fim.)
O aluno que escreveu este texto foi reprovado (é repetente) e o seu texto, trazido para discussão de professores, era apresentado como um texto-problema, e nas questões do cotidiano do ensino tratava-se de buscar alternativas para que a escrita se aproximasse do modelo padrão, de modo que “os erros” acabavam cegando o leitor/professor que não consegue, de modo geral, ver em tais textos um conjunto de acertos e uma configuração textual surpreendente. Dentro da sala de aula, pode-se dizer que estes são textos de autores sem leitores.
O segundo texto foi produzido em circunstâncias diferentes: trata-se de um texto produzido em prova de vestibular, e por isso mesmo ao final do processo de escolarização básica. Ainda que não se possa dizer que a situação de vestibular seja uma situação de sala de aula típica, o vestibular é, entre nós, um rito de seleção e de passagem sempre no horizonte dos procedimentos escolares, apresentado até mesmo como motivo de aprendizagem de certos conteúdos. Abstraindo-se as condições mais próximas de produção [como se fez na apresentação do texto anterior], o produto do esforço feito pelo candidato indicia os processos de formação escolar.
Proposta temática do vestibular de 1994, referente ao tipo de texto dissertativo
A Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, conhecida também como campanha contra a fome, tem provocado numerosas manifestações contraditórias, reavivando uma discussão antiga sobre a validade da ajuda aos desfavorecidos.
Levando em conta a coletânea abaixo, que contém fatos e opiniões diversas sobre aquela campanha, redija uma dissertação sobre o tema: dar o peixe ou ensinar a pescar?
- Já são quase 32 milhões de brasileiros famintos, num país que desperdiça somente em alimentos o equivalente a US$ 4 bilhões. Apenas 20% desse desperdício saciariam a fome de todos esses brasileiros. (“O avesso da fome”, Jornal do Brasil, 12/09/93)
- A cada ano que passa, mil crianças morrem por dia debaixo do céu brasileiro. Morrem de doenças para as quais a medicina criou uma ininidade de nomes, todos sinônimos de um só mal: fome, subnutrição. (Eric Nepumoceno, Caderno FOME, Jornal do Brasil, 12/09/93)
- Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na Terra de Canaã. (José Américo de Almeida, A bagaceira)
- Querido Cony, (…) venho te dar os parabéns pela crônica “Não é por aí”. Também eu não quero bagunçar a campanha contra a fome (…), mas já era tempo de alguém dizer que para acabar com a fome precisa-se de reforma agrária, justiça social, melhor distribuição de renda. A caridade é uma das virtudes teologais, mas para acabar com a fome no Brasil não basta… (Jorge Amado, Painel do Leitor, Folha de S. Paulo, 14/09/93)
- Betinho – … há uma relação estreita entre conjuntura e estrutura. Se eu não sou capaz de mudar alguma coisa aqui e agora, seguramente não serei capaz de mudar no futuro… Toda vitória que eu consiga hoje, por menor que seja, está criando condições para a reforma estrutural.
Folha – O movimento tem um caráter filantrópico, assistencialista. A filantropia sempre foi considerada inócua e muitas vezes associada à picaretagem.
Betinho – Pilantropia (M). Esse movimento está nos obrigando a diferenciar solidariedade de assistencialismo e filantropia de pilantropia. Para mim, solidariedade é um gesto ético, de alguém que quer acabar com uma situação, e não perpetuá-la. Já o assistencialismo é exatamente o contrário.
(de uma entrevista de Betinho ao jornal Folha de S. Paulo, 06/09/93)
- Mas eis que Chico Buarque, justificando sua participação no show do Memorial, veio com um argumento curioso. Você pode dizer que distribuir alimentos não resolve nada, lembrava ele, mas não distribuir resolve alguma coisa? Já que nada vale nada, um pouco de caridade é melhor do que nenhuma. (Marcelo Coelho, Folha de S. Paulo, 08/09/93)
- Na piscina do clube Harmonia ouvi uma senhora gordinha dizendo que a campanha contra a fome era comandada pelo PT e que tinha por objetivo arrasar com o nosso país. Outras senhoras gordinhas concordaram, repetindo a velha história de que era melhor ensinar a pescar do que dar o peixe… (Geraldo Anhaia Mello, Painel do Leitor, Folha de S. Paulo, 09/09/93)
- Pessoas que moram nas ruas de São Paulo não têm uma ideia exata do que seja a campanha da Ação pela Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Elas se dizem cansadas de movimentos que distribuem alimentos, mas não conseguem resolver o problema da miséria. Essas pessoas – que seriam as principais beneficiadas pela campanha – pedem a criação de mais empregos, pois querem conseguir uma moradia e poder escolher a comida. (Folha de S. Paulo, 212/09/93)
- Na esperança da revolução redentora, a palavra de ordem era ensinar a pescar. Dar o peixe era o pecado assistencialista, que retardava o processo revolucionário. (…) Hoje sabe-se: o capitalismo não acaba com a miséria. O socialismo também não. Não há mais sonho nem utopia. Resta apenas a concretude tenebrosa da miséria. (…) não se está sugerindo que a sociedade assuma o papel do Estado. Mas é importante compreender: é a sociedade que muda o Estado, não o contrário. (…) (o cidadão) morrerá, como têm morrido milhares, se alguém não lhe der comida. (Alcione Araújo, Caderno FOME, Jornal do Brasil, 12/09/93)
- Eu nunca senti fome na vida, mas acho que deve ser muito triste. (Adriana, 12 anos, Veja, 15/09/93)
Transcrição da redação:
Dar o peixe ou ensinar a pescar?
Bem, como eu ainda não estou participando desta campanha fica um pouco difícil formular estar dissertação, mas irei tentar com algumas ideias que estão aparecendo.
Como diz na coletânea que já são quase 32 milhões de brasileiros famintos, o governo poderia ajuda-los melhor em vez de deixar bilhões de alimentos estragarem em seus depósitos, mas por outro lado essas pessoas poderão se acomodar e não irão procurar o seu próprio emprego para poderem comprar seu alimento.
Pelas crianças uma boa parte de culpa vem de seus pais, por acomodar-se. Como é o caso de muitos que conheço, que mando seus filhos pedirem esmola para poderem comer, por exemplo, crianças vendendo limão, engraxando sapatos e outras coisa s mais.
Como argumento tem pessoas dizendo “já que nada vale a pena, um pouco de caridade é melhor do que nenhuma”, como ele disse ajudar é caridade, mas se essas pessoas não quiserem mais procurar o seu sustento, e ficarem só na dependência da ajuda de toda a a nação, o que essa ajuda iria significar?
Nesta frase da mesma Adriana, eu poderia referir a mim mesmo, nesse momento da prova eu estou com muita fome, por não ter almoçado direito, para dar um exemplo, minha barriga está roncando, até parece que meu estômago está comendo meus orgãos é horrível, só assim dá para se saber um pouco como e passar fome.
Nos vestibulares da Unicamp são propostos alguns textos ou extratos de textos para leitura do candidato, como subsídios para o desenvolvimento do tema que lhe sé proposto. Lendo esta coletânea, chama a atenção a falta de independência do texto produzido, de modo que a sua sequência segue a seleção feita pelo autor da coletânea e a compreensão do leitor depende crucialmente de ele também conhecer os textos propostos para leitura. Pode-se afirmar que este é um texto “sem autor” para leitores “cooperativos” – porque também leitores da coletânea.
Considerando onze anos de escolaridade – no mínimo – separam os autores destes dois textos, o primeiro no gênero narrativo e com independência, o segundo de gênero argumentativo e dependente dos subsídios propostas pela escola, com todas as dificuldades que tal aproximação pode trazer, pode-se perguntar o que aconteceu no processo escolar que torna autores dos inícios da escolarização repetidores de leituras mal digeridas no final da escolarização?
Seguramente, o primeiro texto, enquanto gênero e enquanto forma de composição, está muito mais próximo do texto literário; o Texto 2 resulta de um esforço de integrar diferentes ideias e diferentes posições defendidas na coletânea, sem que de fato o autor diga algo sobre o tema que lhe foi proposto. Em certo sentido, pode-se dizer que no primeiro texto há um autor que fala/escreve; no segundo texto há um autor que silencia e deixa falar no texto que escreve. O primeiro é um texto de autor sem leitor, o segundo é um texto de leitor sem autor. Como o convívio escolar com textos pode produzir tal paradoxo, quando o convívio com textos escritos, ainda que imponha a “amnésia do já-dito” (Babo, 1987), é parte constitutiva do autor?
Ainda ‘dentro da sala de aula’, uma hipótese pode ser levantada a propósito deste distanciamento entre produtos escritos tão distintos e diz respeito aos gêneros discursivos que são propostos para a leitura (e para o exercício de produção de textos).
A tentativa de aproximar a sala de aula ao mundo do cotidiano foi responsável pela diversificação dos gêneros de textos com que se trabalha na escola. A defesa do emprego de textos não literários – até chamados de textos autênticos, como se as obras literárias não fossem textos autênticos (Cruz e Jouët-Patre, 1998) – acabou por produzir um afastamento da literatura (especificamente da sala de aula), em benefício da presença de inúmeros outros gêneros discursivos, de modo geral textos pragmáticos ou referenciais.
Analisando dados coletados na pesquisa “A circulação de textos na escola”, relativamente à presença de textos poéticos, Gebara (1997:146) afirma
Nas primeiras séries, os poemas nos livros didáticos são muitos (representam muitas vezes 45& dos textos do livro). Aos poucos, à medida que se avança no 1º. grau, a situação muda e o texto poético vai sumindo (nas coleções de 5ª. a 8ª. séries, dos textos verificados, 22,9& são poemas e 4,5& letras de música. Principalmente na alfabetização este número é grande, pois há um aproveitamento “do pendor infantil para o ritmo tanto sonoro quanto corporal”. Nas séries seguintes, os poemas são selecionados em função da utilidade que possam vir a ter na apresentação de um conteúdo exigido pelo currículo. Por esta razão, da 5ª. série em diante, quando o espaço lúdico do aluno é diminuído, os poemas também o são, porque “a poesia” , como assinala Micheletti, “via de regra é permitida apenas como uma atividade lúdica. A escola é o lugar da seriedade, assim não se pode perder tempo com uma linguagem que não pertence ao mundo da prática” .
Em pesquisa independente, analisando um conjunto de livros didáticos, da década de 50 à década de 90, Parmigiani (1996:87) exemplifica a correlação numérica entre prosa e poesia com uma coleção de livros didáticos que teve sucessivas edições modificadas desde a década de 60 (Português através de textos, de Magda Becker Soares), apresentando os seguintes resultados:
Ano Poesia Prosa % Poesia % outros textos
1960 16 32 35 65
1980 02 15 11 89
1990 09 09 50 50
Estes dados revelam que a leitura e a produção de textos supostamente pragmáticos são preferidos e considerados mais apropriados para o desenvolvimento da capacidade de expressão escrita dos estudantes. Embora os dados de Parmigiani mostrem uma recuperação do espaço para a poesia na década de 90, a pesquisa anterior, ainda que não apresente dados estatísticos, revela a tendência de exclusão da poesia da sala de aula(2).
Se, como disse Octavio Paz, el poema es una obra inacabada, siempre dispuesta a ser completada y vivida por un lector nuevo, e se o resultado do nosso segundo texto parece absolutamente inadequado em quanto expressão linguística na modalidade escrita , uma questão que poderia ser posta diz respeito ao convívio com o gênero literário como caminho necessário a ser percorrido se se pretende desenvolver capacidade de expressão, mesmo quando o autor é chamado/convocado a produzir um texto argumentativo.
Ao paradoxo já apontado – o fato de um texto de estudante de final de escolarização ser menos compreensível do que o texto de um estudante no início da escolarização – pode-se agora apontar outro: enquanto o texto literário exige maior autoria do leitor no processo de produção de sentidos, autoria que se espera deste mesmo leitor quando escreve um texto, é precisamente este gênero de texto que a escola marginaliza. Por quê?
De fora da sala de aula
Dificilmente uma resposta ou mesmo várias respostas a este porquê será satisfatória. Responder implica na verdade um programa de pesquisa, e qualquer proposta de resposta não passa de indicação de caminhos para a compreensão aqui restrita a duas questões: (a) o desempenho linguístico na modalidade escrita revela um processo de desaparecimento da autoria à medida que a escolaridade avança (esta questão foi levantada pela aproximação certamente temerária de dois textos produzidos por sujeitos diferentes em condições de produção diferentes, mas que indiciam a existência de algum problema de condução do processo de ensino e aprendizagem); (b) o meritório movimento de diversificação de textos de leitura [e de gêneros propostos para a produção] acabou por diminuir excessivamente a presença do texto literário, especialmente do texto poético, nas salas de aula [em certo sentido, nesta segunda metade do século acabamos realizando o projeto de expulsão da poesia proposto por Platão]. Este movimento de diversificação não pode ser simplesmente à complexidade das atividades humanas que levam à multiplicidade de gêneros discursivos (Bakhtin, 1962/1963), mas a um projeto de sociedade e de ciência mais profundo que sustentou o sucesso deste movimento.
Para contribuir com a construção de respostas às questões com que estamos nos ocupando, gostaria de explorar precisamente este movimento “epistemológico” na área das ciências humanas que me parece ter contribuído para a “expulsão do poema” das salas de aula em nome da presença de textos mais objetivos e pragmáticos.
Explorando a questão, retomo três características da ciência moderna: a universalidade, a objetividade e a preditibilidade. Desnecessário dizer que o texto poético – e a arte de um modo geral – foge a qualquer destas características, precisamente aquelas que constituem o “âmago” do projeto científico que se desenha desde o século XVIII como paradigma dominante das ciências ditas exatas ou da natureza.
As ciências humanas, aproximando-se deste paradigma dominante, para adquirirem o estatuto de ciências, acabam abandonando práticas tradicionais de interpretação de textos (a filologia, por exemplo), para irem construindo objetos específicos que podem ser descritos objetivamente, com pretensão de universalidade e com formulação de regras preditivas de acontecimentos futuros. Neste sentido, um paralelo bastante esclarecedor pode ser buscado na área dos estudos da linguagem, quer comparando as práticas científicas dos filólogos contrapostas às práticas científicas dos linguistas, quer contrapondo as práticas destes com os estudos literários, cuja teoria, apesar dos esforços do movimento estruturalista, não chegou a constituir-se numa ciência no sentido que damos ao termo nos dias atuais.
Ao tempo que neste século cada vez mais as ciências humanas foram “matematicizando-se”, construindo objetos científicos e desligando-se das interpretações dependentes de sujeitos, as chamadas ciências da natureza, cujo modo de fazer ciência ilumina este movimento de aproximação de métodos, caminhava em sentido contrário, do modo que as três características apontadas anteriormente acabaram por ser “desgastadas” pela própria prática científica.
Acompanhando Santos (1987), pode-se dizer que a universalidade é posta em questão pela teoria da relatividade na física, já que esta reincluiu as questões do tempo e do espaço; a objetividade é posta em questão pelas observações de Heisenberger e Bohr, já que as medições mais precisas de um objeto não ocorrem sem que nele se interfira com os instrumentos utilizados; a preditibilidade é posta em questão pela teoria das estruturas dissipativas de Prigogine. Retomemos aqui algumas passagens do estudo de Santos:
… Einstein constitui o primeiro rombo no paradigma da ciência moderna, um rombo, aliás, mais importante do que o que Einstein foi subjetivamente capaz de admitir. Um dos pensamentos mais profundos de Einstein é o da relatividade da simultaneidade. […] a fim de determinar a simultaneidade dos acontecimentos distantes é necessário conhecer a velocidade, mas para medir a velocidade é necessário conhecer a simultaneidade dos acontecimentos. Com um golpe de gênio, Einstein rompe com este círculo, demonstrando que a simultaneidade de acontecimentos distantes não pode ser verificada, pode tão só ser definida. É portanto arbitrária e daí que, como salienta Richenbach, quando fazemos medições não pode haver contradições nos resultados uma vez que estes nos devolverão a simultaneidade que nós introduzimos por definição no sistema de medição (p. 24/25)
[…]
Heisenberg e Bohr demonstraram que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar, e a tal ponto que o objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou. (p.35)
[…]
A teoria das estruturas dissipativas e o princípio da “ordem através de flutuações” estabelecem que em sistemas abertos, ou seja, em sistemas que funcionam nas margens da estabilidade, a evolução explica-se por flutuações de energia que em determinados momentos, nunca inteiramente previsíveis, desencadeiam espontaneamente reações que, por via de mecanismos não lineares, pressionam o sistema para além de um limite máximo de instabilidade e o conduzem a um novo estado macroscópico (p.27-28).
Estas três condições teóricas, entre outras condições, mostram que nas ciências da natureza as características básicas da ciência moderna acabam por ser abandonadas por força do próprio desenvolvimento científico. Os esforços desenvolvidos pelas ciências humanas para chegarem a ter o estatuto de ciência – universalidade, objetividade e preditibilidade – fizeram-nas caminhar no sentido contrário àquele percorrido pelas ciências da natureza. Recorrendo mais uma vez a Santos *1986:28), estamos chegando a
… uma nova concepção da matéria e da natureza eu propõe uma concepção dificilmente compaginável com a que herdamos da física clássica. Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente.
A hipótese que pretendo apresentar é que as atividades de aula estão marcadas pelo projeto mais amplo de cientificidade das ciências humanas, e é este projeto que deu sustentação social à preferência pelos textos pragmáticos, em prejuízo da presença mais marcante da literatura no conjunto de textos postos nas mãos dos estudantes para leitura e como “modelos” de textos a serem produzidos.
O retorno da poesia aos livros didáticos, neste final de século, é também consequência do “desencanto” contemporâneo com a objetividade e com a verdade, já que mais do que nunca os próprios cientistas têm se debruçado sobre suas próprias práticas pondo em questão a concepção de ciência que herdamos.
Nota
- Este texto foi escrito para comunicação no IV Colóquio sobre questões curriculares, ocorrido na Universidade do Minho, Braga, Portugal em fevereiro de 2000. No mesmo evento apresentamos outro texto, em co-autoria com Cecília Azevedo L Collares e Maria Aparecida A. Moysés (A integração disciplinar pelo foco das práticas educativas: uma proposta curricular para um programa de mestrado). Meu texto foi apresentado numa sessão do evento, o coordenador constituindo uma “mesa” com os cinco ‘comunicadores’ previstos no programa, e mais uma sexta comunicadora acrescentada depois de feito o programa. A coordenação não seguiu a sequência prevista na programação, passando a palavra primeiro para os outros cinco membros da mesa, todos portugueses. Depois deles, falou muito mais tempo do que o previsto para qualquer comunicação, fazendo uma síntese própria das demais apresentações. Ao final de sua fala, informa que não haveria mais tempo para a minha apresentação porque já tínhamos ultrapassado o tempo previsto para a sessão! Exige apresentar meu texto e o fiz apresentando-o inteiro e obrigando a todos da mesa, por educação, terem que ficar na sala! Foi a minha primeira experiência de colonialismo que ainda aparecem em eventos científicos, desmerecendo qualquer pesquisador das antigas colônias. A Corinta já havia passado por experiência semelhante num evento em Faro, em que falam ainda depois dos brasileiros, os pesquisadores de países africanos! Saí da sessão e fui direto registrar com o Prof. José Augusto Pacheco (coordenador do evento) minha surpresa e minha indignação. Esta deixou de ser somente minha: o Prof. Pacheco ficou visivelmente chateado e me ofereceu a oportunidade de participar de outra sessão de comunicações para reapresentar meu texto, oportunidade de agradeci. Depois disso, tive excelentes convívios com colegas da Universidade do Minho, tanto sendo convidado para fazer palestras e dar aulas em curso de pós-graduação, como sendo convidado como conferencistas de eventos. Como no Brasil, também em Portugal há aqueles que fazem a maioria passar vergonha!
Como o leitor notará, este texto é, com poucas mudanças, um produto do recorte/cole, do contr c/ contr v do texto já aqui publicado, Da sala de aula à construção externa da aula., de que acaba sendo uma versão meio resumida. O texto foi publicado nas Actas do Colóquio, sob o título do tema do evento: “Políticas curriculares: caminhos da flexibilização e integração” em 2000. Dez anos depois, fiz alterações nas referências deste texto e o inclui na minha coletânea A Aula como acontecimento (São Carlos : Pedro & João Editores, 2010), sob o título “Sobre os objetos de ensino em língua portuguesa”.
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__________ e Silva, Ezequiel T. (orgs) Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo : Ática, 1988.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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