Sob o sol-jaguar, de Ítalo Calvino

Às vezes dá saudades de um livro, e a gente volta para relê-lo, para ao ler lembrar o que já lera, retirar do triturador esquecimento o que se passou que já não vem sozinho à consciência. Reler. Não dará para reler tudo na vida. Alguns, poucos, talvez.
Estes três contos que compõem o livro foram escritos como uma espécie de desafio que se impôs o grande escritor: ter um tema – os sentidos dos homens – e dar-lhes uma história em que nem o começo, nem o fim têm importância crucial, porque importa o mergulho no sentido-tema de cada história que o faz aparecer em nós quando com ele estamos tão habituados, tão próximos, que não os percebemos.
Infelizmente Ítalo Calvino não teve tempo de realizar todo seu projeto, escrever cinco contos, cada um com seu tema específico. Ficamos apenas com o olfato, o gosto e a audição. Estes contos foram publicados em 1986. Ítalo Calvino faleceu em 1985.
Para tratar do primeiro tema, o narrador se desdobra em diferentes personagens: inicialmente nos dá uma epígrafe mais ou menos profética: “Esquecido o alfabeto do olfato, que produzia outros tantos vocábulos, com um léxico precioso, os perfumes permanecerão sem palavras, inarticulados, ilegíveis”.
E então chegam as histórias. O primeiro é um aristocrata, Monsieur de Saint Calieste, que busca na perfumaria de Madame Odile não um perfume, mas a mulher cujo perfume ele conhece sem conhecer e saber quem o usava no baile de máscaras. Buscava a mulher de que conhecia somente o perfume. A perfumista e suas funcionárias fazem-no cheirar tantos que o perfume colhido no baile se esvai, se desfaz na memória e resta-lhe uma dor de cabeça terrível.
Entremeadas a esta história, outras aparecem: aquela do baterista que acorda num quarto cheio de corpos nus, que dormem ainda depois do que fora uma noitada de música, bebida e droga. Precisa acender o gás… e anda de gatinhas por sobre os corpos até sentir o cheiro de uma mulher, de uma fêmea. Não resiste ao perfume e sobre seu corpo, vasculha todos os cheiros. Os corpos se encaixam e o auge do prazer chega. Meio tonto, meio morto, meio sonado, ele volta a procurar o gás. Depois, retorna em busca do corpo do perfume que não esquece. Não encontra, sai para fora do edifício, toma ar e volta já dia claro pensando em encontrar a mulher: ninguém mais estava por lá.
A terceira história que permeia a narrativa é do primata, quando estava se tornando moda erguer as mãos e andar somente sob os pés! Era moda! A personagem sonha com o retorno a um passado: “… não era assim quando a savana a flores o paul eram uma rede de odores e corríamos de cabeça baixa sem perder o contato com o terreno, ajudando-nos com as mãos e com o nariz para encontra o caminho, e tudo aquilo que devíamos entender passava pelo nariz antes dos olhos, o mamute o porco-espinho a cebola a seca a chuva são antes de mais nada cheiros que se destacam dos demais…”
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O segundo conto é dedicado ao gosto, ao paladar. Aqui há um narrador em primeira pessoa que assume contar o que vai vivendo com a mulher Olívia enquanto visitam o México, seus monumentos, suas ruínas, sua história. E comem. Porque viajar é comer o que não se come, é degustar o que não há de onde se saiu. Assim, ainda que as obras de arte, os museus, as ruínas, as igrejas sejam o motivo aparente da viagem, serão as comidas que marcarão a memória: as comidas apimentadas, fortes. As comidas com os mais variados chiles, os modos de fazer e a degustação, o sabor na boca, os dentes triturando. As comidas tradicionais, ancestrais, que as cozinhas mantêm, nos ritos das cozinheiras e no seu saber que é “a predominância da sapiência sobre a ciência”.
A importância do comer ao viajar aparece com força:

… a verdadeira viagem, enquanto introjeção de um “exterior” diferente do nosso habitual, implica uma mudança total da alimentação, engolir o país visitado, na sua fauna e flora e na sua cultura (não só as diferentes práticas da cozinha e do tempore mas o uso de diversos instrumentos com os quais se amassa a farinha ou se mexe a panela), fazendo-o passar pelos lábios ou pelo esôfago. Este é o único modo de viajar que faz sentido hoje, quando tudo o que é visível pode ser visto pela televisão sem sair da poltrona de cada um. (E não se argumente que o mesmo resultado é obtido frequentando os restaurantes exóticos de nossas metrópoles: eles falseiam tanto a realidade da cozinha a qual pretendem representar que, do ponto de vista da experiência cognitiva que daí se pode extrair, equivalem não a um documentário mas a uma reconstrução ambiental filmada num estúdio cinematográfico).

Esta atenção ao paladar, ao gosto, ao mastigar que tanto o narrador quanto sua mulher vão experienciando levam-nos a uma união, quando no final do conto, num restaurante beira-rio, olham-se mimetizados como duas serpentes prontas a engolir uma a outra “conscientes de sermos também devorados pela serpente que a todos nos difere e assimila sem cessar no processo de ingestão e digestão do canibalismo universal que põe sua marca em cada relação amorosa e anula os limites entre os nossos corpos e a sopa de frijoles, o huacinango a la veracruziana, as enchidas… “

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O terceiro conto tematiza a audição. Aqui a história é de um rei que sentado em seu trono e dele não podendo se mover porque corre o risco de, quando retornar, o lugar estar ocupado por outro, que somente tem uma forma de vida: a escuta dos sons de seu palácio, de sua capital. Serão os sons que marcarão as horas, que informarão ao rei do que acontece nos corredores, nas cozinhas, nos subterrâneos do palácio em que se acha preso, com poder que pode perder como ele mesmo fez seu predecessor perder por uma revolta que tomou o palácio e o poder. Assim, o rei escuta tudo. Dá sentido aos sons. Quer ouvir e ouve o que carrega consigo. Estão tramando alguma conspiração? Conspirador fora ele próprio, quando livremente podia andar pelas ruas da cidade e pelos corredores e cômodos do palácio. Outro conspirador virá… e como ele jogou ao calabouço do palácio o rei anterior, ele próprio será jogado aos mesmos subterrâneos onde encontrará em sons seu predecessor. Note-se que não é o enredo, que contém obviamente a escuta da voz de uma mulher, a mulher que o rei passa a desejar e de que conhecerá somente a voz em seu canto que passou pelas janelas, pelas cortinas, e chegou aos ouvidos do rei imóvel.
Aqui vale mesmo é a reflexão sobre a escuta. E sobre o poder, sobre a usurpação do poder, sobre os fantasmas que habitam o usurpador, tenha ele chegado ao palácio da forma que seja. No caso, uma revolta, um motim. Também um golpe produz fantasmas. Também a mentira que leva ao poder produz terror… já que “todo palácio se apoia em subterrâneos onde se acha sepultado algum vivo ou onde algum morto não encontra paz. Não adianta tapar os ouvidos com as mãos: vai continuar ouvindo tudo do mesmo jeito”. [Mesmo que o Palácio seja da Justiça… e sobretudo aí.]
Este Rei à escuta dá oportunidade ao narrador de refletir sobre a voz e de lhe dar a mais perfeita definição que conheço:
Uma voz significa isso: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes. Uma voz põe em jogo a úvula, a saliva, a infância, a pátina da existência vivida, as intenções da mente, o prazer de dar uma forma própria às ondas sonoras…

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 Certamente os homens manterão seus sentidos. E porque sentidos, pouco são sentidos! Mas são eles que nos fazem dar sentidos recobertos de palavras que fazem com que apareçam.
 
Referência. Ítalo Calvino. Sob o sol-jaguar. Tradução Nilson Moulin. São Paulo : Cia. das Letras,1995 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.