Senilidade, de Ítalo Svevo

Este é o segundo romance do ‘fundador da moderna ficção italiana’. O primeiro romance foi Uma vida (de 1892; no Brasil: Nova Alexandria, 1993), e depois Senilidade veio  A consciência de Zeno (1923; no Brasil há uma edição na coleção “Biblioteca Foha” de 2003; além destes publicou ainda Uma farsa bem sucedida (1928, no Brasil “Uma gozação bem sucedida, editora Carambaia, 2017) e postumamente uma coletânea de contos.

Ítalo Svevo é pseudônimo de Ettore Schmitz, nascido em Trieste ao tempo em que a cidade pertencia ao Império Austro-Húngaro. O sobrenome de origem alemã e o nome tipicamente italiano já desvelam hibridez que se revelará no tom mais ou menos soturno e paradoxalmente um tanto zombeteiro deste seu romance, desde o título “Senilidade”.

O enredo é a história de amor entre Emílio Brentani, um pequeno burguês de família outrora abastada, hoje reduzida à sobrevivência como empregado de escritório, já ‘maduro’ pela idade, e Angiolina, uma bela coquete de procedência humilde, filha de operário que ao final se descobre estar completamente maluco. Ingênuo, Emílio se apaixona sem querer compromissos maiores:

Aos trinta e cinco anos ainda encontrava na alma a chama insatisfeita do prazer e do amor, e já a amargura de não os haver desfrutado, enquanto que no cérebro um grande medo de si mesmo e da fraqueza de seu próprio caráter, de que mais suspeitava do que conhecia por experiência. […]

Se a moça, como seria de imaginar pelo seu olhar límpido, era honesta, certo que não seria ele quem se exporia ao perigo de corrompe-la; se, ao contrário, o olhar e o perfil mentiam, tanto melhor. Seria divertido em ambos os casos, sem se arriscar em nenhum deles.

Mas a paixão por Ange será maior do que recomenda a razão. Ele a tem por “pura”, ainda que vá tomando conhecimento de seu antigo noivado com Merighi, em cuja casa vivera por dois anos… Vai ainda percebendo que sua amada gostava de ser admirada, paquerada, cortejada pelos homens por quem passam em suas caminhadas pelos lugares românticos de Trieste. Mas Emílio não quer abusar…

Enquanto ele age como um apaixonado respeitador da moça, seu amigo Stefano Balli, um escultor de pouco renome, faz todos os esforços possíveis para ensinar a Brentani algumas lições de vida para que compreendesse que a mulher com quem vinha saindo e a quem frequentava na própria humilde casa não era digna do respeito que lhe era devotado. Nos vários intentos, Balli somente se sai aparentemente vitorioso, porque retornando à própria casa, no silêncio da solidão o amor se revigora, e lá vai Emílio em busca de sua amada. Neste sentido, sua compreensão do amor ainda é aquela do amor cortesão: parece crer no que o homem dos Séc. XII e XIII acreditavam: a fusão entre o Bem e o Belo. “Uma bela aparência não pode senão refletir profundas qualidades interiores” como ensina Michel Pastoureau (No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda).

Para que possam ambos desfrutar de seu amor, Angiolina propõe que seria necessário um terceiro que com ela noivasse e casasse. Assim, sem qualquer perigo, Emílio a teria por amante. E de fato Ange encontra um possível pretendente (a corno), o alfaiate Volpini, a quem supostamente se entrega diante da promessa de casamento, compromisso que logo se desfaz.

O alfaiate foi motivo de grandes ciúmes! Ele a procura para terminar o relacionamento, porque não poderia se rebaixar a tanto: ser inversamente o ludibriado por um reles alfaiate! Angiolina o faz ver que se entregara a Volpini por amor a ele, Emílio. Que isto fora uma combinação entre eles, e que agora estavam livres para se amarem… é o que acontecerá, numa primeira noite na própria casa de Angiolina e depois num quarto alugado num edifício um tanto suspeito (mas em que Ange circulava como se tudo conhecesse).

O relacionamento perdura, apesar de todas as advertências de Balli, o amigo, que pretendia fazer Emílio conhecer a vida. “Balli estava disposto a curar definitivamente o amigo.” No entanto, todos os indícios dos tempos em que Emílio e Angeolina não estão juntos, a invenção de um suposto emprego numa família que lhe ocupa muito tempo e às vezes parte da noite com que justifica seus atrasos para os encontros programados entre eles, nada faz Emílio arredar pé da paixão e da crença na pureza e honestidade de sua amada.

Balli, que também admira Angiolina, mas como uma mulher desfrutável, se propõe a fazer uma escultura da namorada do amigo. Uma traição com Balli seria tudo o que Emílio não suportaria… Aliás, ele vivia com ciúmes e imaginando relações com vários outros jovens de suas relações: Sorniani será um deles. Entre este e Emílio ocorre um diálogo revelador que, no entanto, cujo verdadeiro sentido o apaixonado Emílio não consegue compreender. Quando ambos se encontram, pergunta Sorniani:

– Como vão os amores?

Emílio fingiu não compreender: – Que amores?

Aquela zinha. A loura, Angiolina.

Ah, sim – fez Emílio com ar de indiferença. – Nunca mais a vi.

– Faz muito bem – exclamou Sorniani com grande entusiasmo, aproximando-se de súbito. – Aquilo não é mulher para jovens como você e que, além do mais, não têm uma saúde muito sólida. Transformou a cabeça do Merighi e depois andou por aí aos beijinhos com  meio mundo.

A apagada e feia irmã de Emílio, Amalia Brentani, vivia sua solidão já que o irmão, a partir da paixão por Ange, pouco se importava com ela. E poucas vezes trazia seu amigo Balli para a casa. É por Balli que Amalia se apaixonará, uma paixão que obviamente será mal sucedida, já que ao escultor a vida de família não lhe assentava, e para quem “amava apenas as coisas belas e desonestas, aquele afeto fraterno que h era oferecido por uma jovem feia só causava incômodo”.

Este amor escondido, guardado, será importante no desenvolvimento do enredo: afinal, Amalia fala alto nos sonhos e Emílio descobre sua paixão. Depois, num de seus retornos à casa, encontra a irmã totalmente transtornada, numa crise de histeria, que a leva à febre e posteriormente à morte. Balli acompanha o amigo, percebe o amor guardado e escondido de que era objeto. Sente-se um pouco culpado…  Seria a morte da irmã o remédio maior que apagaria de Emílio sua paixão por Angiolina. Não apagou: apenas pôs cinzas sobre o que fora seu sonho de encontro com uma mulher que amou. Há, sempre há um último encontro.

 Foi ao encontro. O sofrimento voltar-lhe-ia pouco depois: nesse instante ele amava, a despeito de Amalia. Não havia sofrimento nem que podia fazer exatamente aquilo que sua natureza exigia. Saboreava com volúpia o sentimento calmo de resignação e de perdão. Não preparou nenhuma frase para comunicar seu estado de espírito a Angiolina; essa última entrevista devia ser-lhe mesmo absolutamente inexplicável, pois agiria como se algum ser de inteligência superior estivesse presente para julgar a ambos. […]  

O encontro será mais uma vez no passeio de Sant’Andrea, onde se conheceram. Quando Emílio chega, Angiolina reclama de seu atraso, mas ele lhe mostrou o relógio que provava estar chegando na hora marcada. Ela vinha vestida com aprumo, num vestido castanho que Emílio não conhecia. Apressada, alegou o frio para remarcar o encontro para o dia seguinte, mas ele a segurou e por fim, como queria lhe dizer a verdade, gritou-lhe que esta era a última vez que se veriam…

E sabe por quê? Porque você é uma … – Hesitou um instante, depois gritou a palavra que até mesmo à sua ira parecia excessiva, gritou-a vitorioso, triunfando sobre sua própria dúvida.

– Largue-me – gritou ela transtornada pela raiva e peo medo -. Largue-me ou grito por socorro.

– Você é uma puta! – gritou de novo, vendo que conseguira irritá-la e assim renunciar à agressão física. – E pensa que eu não tinha percebido há muito a espécie de pessoa que você é? Quando encontrei você vestida de criada, na escada de sua casa – relembrou aquela noite em todos os seus pormenores – com aquele xale todo colorido na cabeça, os braços ainda quentes da cama, pensei logo na palavra que agora lhe disse. Mas preferi não dizê-la e continuar aproveitando-me de você como fizeram os outros todos, Leardi, Giustini, Sorniani e… e… Balli

Livre depois disso, viveu solitário. Até chegou a escrever um capítulo de um novo romance… mas depois tentou retornar à atividade artística, mas nada lhe surgiu. O destino lhe reservara viver esta experiência:

Durante muito tempo a sua aventura o deixou desequilibrado, descontente. Parram pela sua vida o amor e a dor e, privado desses elementos, encontrava-se agora com a sensação de alguém a quem tivesse sido amputada uma parte importante de seu corpo. Mas o vazio acabou por encher-se. Renasceu nele o amor pela tranquilidade, pela segurança, e o cuidado de si mesmo afastou-o de qualquer outro desejo.

Trago esta citação específica por duas razões:

  1. A personagem Emílio Brentani tinha escrito um romance que lhe dava a fama de escritor na cidade, mas vivia ou sobrevivia de seu trabalho alienante num escritório. Aliás, no romance, pouco aparece esta vida de trabalho. Seu romance não havia feito sucesso, mas o colocara no convívio com outros jovens artistas: escultor, pintor, etc. Tendo passado pelas duas mais fortes experiências – a da paixão e a da morte – retorna à literatura. Um segundo livro em que contaria a vida atribulada de uma paixão mal sucedida. Aqui aparece o registro de uma ficção possível que teria por tema precisamente a história fictícia que se acaba de ler… um jogo que pondo como ficção do livro a escrever, tornaria o que se narrou “verdade” vivida…
  2. Ítalo Svevo escreveu um primeiro romance que passou desapercebido pela crítica, mas que lhe deu fama de escritor em Trieste… Depois publicou Senilidade, novamente recebido sem qualquer entusiasmo. No entanto, sua amizade com James Joyce o incentivou a republicar o livro, porque este havia feito ver a dois críticos franceses – Benjamin Crémieux e Valéry Larbaud – o valor dos dois romances publicados. A segunda edição do livro, em 1927, vem precedida de um prefácio do autor que narra as vicissitudes do próprio romance.

Estas duas observações tem para mim um interesse particular: a primeira porque traz uma técnica que fazer passar por verdade o que se acaba de narrar pelo jogo de contraponto entre duas narrativas; a segunda porque remete às relações entre a própria vida do autor e sua obra. É inescapável que num romance, o ambiente – físico e social – em que vive o autor apareçam; mais raro é que a história de vida deste também apareçam, mas aqui é inegável que num sentido muito vago, Emílio Brentani é Ítalo Svevo, que na verdade é Ettore Schmitz.

Talvez uma das razões para tomar o autor como fundador da moderna literatura italiana tenha a ver com uma mudança radical em relação aos romances românticos. Enquanto a história de madame Bovary se dá entre a pequena nobreza rural, enquanto o tédio e enfado fazem de Bovary pecar, aqui o que encontramos é um romance tipicamente urbano, entre um “empregado” pequeno burguês (com resquícios de um tempo passado) com uma mulher filha de operário, vivendo na cidade e nela encontrando uma forma de explorar o único bem que lhe coube: a beleza física. Madame Bovary é de meados do século; Angiolina Zarri é uma mulher do começo do século XX. E isto faz uma diferença enorme.

Referência. Ítalo Svevo. Senilidade. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1982.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.