Ronda Noturna, de Cadão Volpato

Os cinco instigantes contos que compõem esta coletânea exigem que, ao final de cada um deles, o leitor dê uma parada para recuperar o fôlego, encontrar no enredo o que lhe ultrapassa para chegar ao tema que cada história contém. O imponderável do cotidiano, a alma humana que se desvenda nos detalhes, sem que o autor caia em qualquer julgamento moral, deixando ao leitor que suas próprias entonações valorativas emerjam.

Obviamente o não julgamento do autor não quer dizer que ele simplesmente não entoe suas histórias: criá-las, inventá-las e expô-las à leitura é já uma entonação avaliativa. Há uma diferença entre a valoração e o julgamento moral das “personas” que circulam nos textos. Esta virtude de oferecer algo ao leitor para que ele saia da leitura enriquecido pela experiência estética e pela reflexão que ela provocou é próprio de grandes autores ou de autores que “trabalham” seus textos antes de lhes dar à luz, de modo a desdobrar a linguagem e a história em suas múltiplas: da superficialidade do enredo à profundidade dos sujeitos que se locomovem na vida criada pela ficção.

O primeiro conto, Lotte, acompanha um cotidiano de uma jovem estudante de curso noturno, que durante o dia faz curso de datilografia. Filha de mecânico (Hans), moradora de arrabalde, sonha para além do que seu contexto lhe oferece. Leitura de revista intelectualizada (Senhor), carregando consigo uma edição alemã de Os sofrimento do jovem Werther, ela vive também às voltas com desejos e anseios. Sua madrasta praticamente a detesta, mas ela descobre seu segredo: um amante que é empregado do próprio marido. Seguindo-o, descobre um carro [roubado] de que ele retirava peças e entregava ao patrão sempre que este precisasse de algo, dizendo que achara na rua…

Este carro será o refúgio da jovem, para onde transfere suas revistas e revistas pornográficas que furtou do pai! O trágico da história será a morte do pai por enfarto. Desesperada, foge para seu refúgio. Sabe que sempre foi observada por seu “Werther”. Queima as revistas e o livro. E chama seu colega de datilografia, baixa as calcinhas e abre lentamente as pernas… Deste conto, seleciono: Costumava trancar-se no banheiro com as revistas abertas sobre os joelhos, a calcinha arriada, e lá passava horas pensando. Horas, não. Porque a madrasta logo vinha bater na porta para que ela desocupasse. Só o pai compreendia sua prisão de ventre, mas ele nunca estava. Lotte desde cedo entendeu que liberdade tinha a ver com você ser dono do próprio banheiro.(grifo meu)

No segundo conto, A sagrada família é um imenso dente podre, o narrador é o filho de um casal recém-separado. O pai, um jornalista comunista, separa-se da mulher, uma católica praticante. Haviam marcado viagem de núpcias com atraso, e com a separação, o filho substitui a mãe. Obviamente, o pai ainda está apaixonado pela mulher e seguidamente diz que “o amor é mesmo uma merda”. O ambiente do conto é Barcelona [O novo mundo para mim era Barcelona e não aquele que o dedo de pedra de Colombo apontava no mar, ao final das Ramblas].

No conto, o filho recorda que o pai continuava panfleteando mesmo durante a ditadura o que incomodava a mãe; recorda também sua primeira comunhão a que o pai não comparece, mas leva mãe e filho para a igreja e os busca no final da cerimônia. Nos passeios pelo Bairro Gótico de Barcelona, chegam à Igreja de Nossa Senhora del Pi, e o pai devotamente ora diante da imagem da Virgem, o menino percebe que ele lhe dá uma piscada e compreende o recado: era preciso dizer à mãe que o pai se convertera [ainda que isso não fosse verdade].  O título vem de uma frase atribuída a Dalì, crítica feroz ao modernista Gaudì que teria enchido a cidade vários dentes podres…

Constelação é um conto cinematográfico! Um roteiro de filme poderia sair dele. Trata-se de um grupo de pobres coitados que resolvem, sob a liderança do “velho” que constitui o grupo. Graças a sua semelhança física com Marighella, o projeto executado era fazer um assalto ao um banco atribuindo-o ao grupo comandado por Marighella. Assim, começa o estudo de como eles faziam um assalto; as companhias imprescindíveis de uma mulher (loura) e de um jovem intelectual (estudante). O grupo é constituído, mas o jovem fica doente, com febre alta e não consegue participar do assalto. Fica na casa, enquanto os companheiros realizam a ação bem sucedida. Depois fogem para Santos. O “velho” já planejara: seus cúmplices ficariam com seus familiares por um tempo, depois cada um iria para seu lado. O que caracteriza este conto é a agilidade da ação, mas o leitor não a acompanha em seu desenrolar, mas fica preso ao quarto com o jovem doente: este jogo paradoxal é que dá ao conto sua ligeireza e originalidade: a ação pressentida pelo ausente parado.

O Professor da noite.

Dividindo a casa com um amigo (Athos), vive o professor em seu quarto. O conto se inicia com o personagem tendo um pesadelo: estava sendo entrevistado na TV, justo ele que não assistia programas de televisão há muito tempo. Durante a entrevista, o apresentador chama uma convidada inesperada: a Vênus Anadiômene (adiante se saberá porque ela aparece no sonho: ele lera no livro de Rimbaud o poema da Vênus Anadiômene, que aparece nua, de costas, indo para o banheiro). Acorda. [Foi com a mão na boca e erguendo um fio de baba do travesseiro que ele despertou, enfim, da sesta incomum que acabou só no final da tarde]. Na sala em que encontra Athos, na janela, está uma gata com um rato na boca…uma oferenda para o Professor, segundo Athos. Este tem uma namorada: Nice. Certa noite em que ela e o professor bebiam no Bar do Chileno, ele não lembra se antes ou depois de falarem em dormir juntos, ela o roçava com pé por baixo da mesa do bar. Enfim, nesta noite em que Athos vigiava o local do jornal trotskista, eles foram para a cama. Mas ficou nisso: na verdade, o tema deste conto é a paixão platônica do Professor por Paula, que lhe apareceu a primeira vez num show do Cartola no Morumbi; voltou a ver em outro show ainda de Cartola no Colégio Equipe; depois ela aparece no seu bar, o Bar do Chileno, com uma turma de atores que ensaiavam a peça Marat-Sade. Ela vinha com o namorado, e graças a ele , o Professor aprende o nome de sua amada: Paula. Muda seu comportamento, passa a usar cachimbo com baforadas à Sartre. Quer chamar atenção, mas não consegue. O conto se encerra com ele voltando para casa, numa das muitas noites de bar, em que deixou o cachimbo em cima da mesa. Na rua se contra com a gata que caça um rato. Acompanha a caça bem sucedida da gata… Como se pode notar, há um jogo simbólico constante: a gata e sua caça [o Professor e Paula]; a oferenda da gata [Nice]; o sucesso da gata/o insucesso do Professor na caça. E o desdobramento em dois ambientes de circulação efetiva – a casa e o bar – e dois outros apenas referidos – a escola e o lugar dos shows. Também aqui as dicotomias se reproduzem no mesmo par dicotômico entre o ofertado e o pretendido.

Ronda Noturna, que dá título à coletânea, é o conto estruturalmente mais trabalhado. Em formato de “moisaco”, vai apresentando cenas insólitas vividas pelo mesmo personagem, um senhor já maduro, cujo nome – Castilho – somente vai aparecer no final do conto, no quarto episódio deste mosaico.

1. No bar em que toma seu drinque despenca o ventilador sobre a máquina de café – o susto, o inusitado da cena, a bebida perdida e a bebedeira curada pelo susto, como se verá depois, ventiladores de teto terão presença em outras cenas.

2. A vida de casado que passa a ter depois de dormir algumas noites com uma garota muito nova, de dezessete anos que engravidou e o torna pai. A cena trágica aqui será novamente num bar, em que o pai brinca com a criança jogando-a cada vez mais alto até que ele bate a cabeça na pá do ventilador, machuca-se e é levado para o hospital. O fato separará o casal, a mulher envelhece e passa a ter vida somente como mãe cuidadosa.

3. Em dia de sol forte, vê na rua um mendigo ferido e fica olhando e ao perceber o incômodo que causava ao outro, resolve entrar no prédio. Havia consultórios. Ao porteiro citou o primeiro nome que viu na placa: Dr. Lutz. Um oftalmologista. Faz a consulta, o médico nada encontra em seus olhos, mas lhe diz que o problema estava na cabeça. Num teste, manda-o colocar os óculos que estava sobre a mesa e que fechasse os olhos. O que via? Vejo uma porção de pás girando no vazio, no sentido horário, mas também no anti-horário, em movimento simultâneo. Brancas em fundo negro. Brancas em fundo azulado. E nas cores múltiplas de uma aurora. Marrom, azul, cinza, violeta, rosa, laranja, vermelho. Cruzou os dedos sob o queixo e pergunto, intrigado. O que será que quer dizer isso? Hein? O médico lhe sugere uma viagem…

4. Antes de se iniciar a segunda parte do conto, há uma passagem em que se recupera outra viagem em que o personagem havia conhecido um suíço em Machu Picchu. Tornaram-se amigos e mantinham correspondência. O suíço casara com uma holandesa e vivia em Amsterdan. É para lá que ele segue em viagem, hospedado pelo amigo e sua mulher Lili. Em Amsterdan convive com o casal, vai a uma festa em que de tudo acontece – celebrando o lugar comum de Amsterdan como o lugar da liberdade e da libertinagem livre. Aprende já velho a andar de bicicleta. Começa sua ‘ronda noturna’ andando de bicicleta pelas ruas de Amsterdan.

Este conjunto de contos instigantes de Cadão(Carlos Adão) Volpato, paulista, professor de língua portuguesa, apresentador do programa televisivo Metrópolis (TV Cultura), músico com alguns álbuns disponíveis, não é filho único do autor. Escreveu e continua a escrever. Assim, ficam na mira do leitor outras obras, como A Sombra dos Viadutos em Flor; Os Discos do Crepúsculo; Pessoas Passam pelos Sonhos. Lendo Ronda Noturna, aguça-se a curiosidade pelos outros livros…

Referência. Cadão Volpato. Ronda Noturna. São Paulo : Iluminuras,
1995.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.