Resultado de uma pesquisa de fôlego, esta obra em quatro volumes, reúne romances cujos textos foram transcrições feitas, ao longo de vários anos, por diferentes pesquisadores e poetas – particularmente da escola romântica de Almeida Garret. O limite que se impôs a pesquisa de recolha foi considerar o período de 1828 a 1960 incluindo apenas aqueles publicados nestes 130 anos. Assim, não se trata de uma recolha direta da oralidade – ainda que haja alguns romances colhidos pelo autor e colaboradores cujas transcrições foram publicadas no período considerado, mas de versões fixadas em inúmeras publicações incluindo folhetos.
A data inicial definida remete ao trabalho de Almeida Garret, que publicou em Adozinda os primeiros romances tradicionais portugueses. No primeiro volume há um estudo sobre os romanceiros hispânicos e sobre as questões levantadas na investigação deste gênero, desde suas origens até sua estrutura métrica. Pere Ferré retoma de modo particular o arquivo de romances de Ramón Menédez Pidal, a contribuição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos e a classificação do gênero feita por Samuel Arminstead. A bibliografia manuseada para elaborar estes estudos introdutórios é extensa já que passa pelos vários temas de pesquisa de que os romances foram objeto.
A primeira questão levantada é a da classificação dos romances. O autor acaba por usar a seguinte divisão: Romanceiro tradicional profano; Romanceiro vulgar profano; Romanceiro tradicional devoto; Romanceiro vulgar devoto e Romanceiro tradicional religioso. Nesta divisão, estabelece-se uma dicotomia entre tradicional/vulgar justificada nos temas e no seu tratamento. O conceito de “tradicionalidade” remete a afirmações de Menéndez Pidal: Os gêneros de que se ocupará a Literatura Tradicional – da qual o romanceiro é parte – deverão, em primeiro lugar, ter sido aceites pela comunidade, independentemente de classe ou estados sociais (‘público’ chama-lhe Menéndez Pidal) para, depois de caírem no anonimato, serem transmitidos de geração em geração, sempre com variantes. A variação será, pois, um dos elementos constitutivos dos gêneros tradicionais.
O que se poderia chamar de “vulgar” tanto poderia ser pela variação formal feita na transmissão ao longo do tempo quanto à sua origem inicial, por ser de elaboração do popular; outra razão para a dicotomia poderia ter a ver com uma percepção moralista de “vulgar”, o que soa bastante estranho. Mas esta não é uma compreensão que possa ser afastada, como se revela na passagem abaixo eivada, ao menos para este leitor, de resquícios de preconceitos: Capítulo aparte, pela substancial diferença destes textos, merece o Romanceiro vulgar. De origem também tardia, envereda, geralmente, por uma temática mais plebeia. Os dramas vividos, no Romanceiro velho, pela aristocracia passam a ser transpostos para as camadas populares.
Amplificam-se, por seu turno, o trágico, marcado pela mais viva truculência. Grandes crimes, traições amorosas, cativeiros sem esperança, parricídios são assuntos privilegiados para os poetastros que os criara. Nesta mesma linha, o Romanceiro vulgar devoto fixa os seus temas, mais marcados pelo carácter milagreiro do que por uma religiosidade temperada. (grifos meus)
De qualquer forma, como romances tradicionais, foi a voz do povo que os manteve e será a voz do povo que os manterá vivos: “seja qual for a sua origem, o romance pertence às comunidades que o assimilara”. Questão controversa é o do surgimento do gênero, e sua datação variará segundo os critérios levados em conta pelas pesquisas. Por exemplo, aqueles que consideram a temática do romance como critério, defendem que a criação dos romances tem como datas aproximada àquela dos acontecimentos neles narrados: nesta perspectiva, o romance dedicado à morte do príncipe D. Afonso, filho de D. João II, marcaria os começos dos romances portugueses; a corrente positivista considera como data de nascimento do romance sua primeira aparição escrita, corrente que acaba desconsiderando na verdade a tradição oral de sua transmissão. O autor defende o ponto de vista de que os romances tiveram seu nascimento nos séculos XIV e XV e suas origens são as gestas tradicionais e anteriores.
Outra polêmica tem a ver com a “versão original”, quase “o verdadeiro poema”: o autor critica posições assumidas por Carolina Michaëlis de Vasconcelos que acaba por afirmar a existência de “degeneração lastimosa” em algumas versões, ou “estropiadas”, quando hoje vemos como versões muitas vezes de uma criatividade exuberante. Citando Bénichou, assume que:
Le texte authentique n’est pas en poésie traditionelle une réalité aussi solide qu’em poésie lettrée, moderne ou médiévale; le mélange des textes, dans la tradition orale, n’est pas une contamination, avec ce que ce mot suggère d’irrégulier ou de choquant: c’est un mode d’invention et de recréation normale.
Segundo o autor, o romance sobreviveu porque tinha sua funcionalidade: eles eram usados como canções no trabalho. Com a mudança nestas relações, desde o Século XIX eles começam a desaparecer: “a realidade é bem cruel, direi mesmo que em muitas das minhas incursões por certas áreas geográficas a nossa função é constatar o seu desaparecimento”.
Sem deixar de fazer uma referência às teses que defendem que a criatividade dos co(a)ntadores de romances somente se dá na sua invenção e jamais na aquisição do texto e na sua repetição – Ana Valenciano defende que a comunidade de ouvintes exige que o co(a)ntador se mostre fiel depositário do texto, obrigando-o a recordar bem o texto herdado – o autor se filia à escola de Lord, da tradição oralista dos romanceiros, em que a performance também é espaço de criação.
Teixeira Soares afirmou que “a riqueza de um Romanceiro consiste não só na variedade dos romances mas na abundância de versões de cada um”. Neste sentido,este romanceiro de Pere Ferré é exemplar. Apresenta todas as versões que conseguiu recolher na extensa pesquisa. Por exemplo, só do Bela Infanta apresenta 121 versões no segundo volume da obra.
A transmissão oral dos romances faz recortes. Muitas vezes as versões recolhidas são de uma parte do “enredo”, de uma cena, de um motivo. Certamente as versões mais alargadas são as mais frequentes. Apresento aqui duas versões de Bela Infanta, para mostrar esta particularidade do recorte feita nas recitações do mesmo romance.
1. Versão de Rio de Onor (concelho de Bragança), distrito de Bragança. Editada
por Alves em 1938:
‘Stando a bela em armada no seu jardim assentada,
com pentes de outro na mão seu cabelo penteava.
Deitou os olhos ‘ò mar, viu vir a grande armada.
– Diz-me tu, ó capitão, dize-me pela tua alma,
o marido que Deus me deu se vem na tua armada.
– Nem no vi, nem no conheço, nem sei que sinais levava.
– Levava cavalo branco, sela de prata dourada,
na ponta da sua lança, um Santo Cristo levava.
– Esse home’, ó mulher, morto ficou na batalha,
com vinte e cinco feridas e outras tantas estocadas.
– Ai de mim, triste viúva! Ai de mim, triste coitada!
Algum dia era infanta, agora sou desgraçada!
– Quanto dais, ó bel infanta, a quem vo-lo traz aqui?
– Darei-vos tanto dinheiro quanto podereis contar.
– Não quero o vosso dinheiro, que vos custou a ganhar,
quanto dais mais, bela infanta, a quem vo-lo traz aqui?
– As telhas do meu telhado que são d’ouro e marfim.
– Não quero as vossas telhas que não me pertencem a mim,
sou soldado vou p’r’à guerra, não persisto por aqui.
Quanto dais mais, bela infanta, a quem vo-lo traz aqui?
– De três filhas qu’eu tenho todas três vo-las dava.
-Não quero as vossas filhas que vos custaram a criar.
– Uma é para vos calçar, outra p’ra vos vestir,
a mais pequena delas p’ra convosco dormir.
– Quanto dais mais, bela infanta, a quem vo-lo traz aqui?
– Não tenho mais que vos dar, nem vós mais que me pedir.
– Ainda tendes mais que dar e eu mais que pedir:
esse corpinho bem feito, p’ra convosco dormir.
– Acudi, moços e moças, acudi todos aqui,
a fazer jaquetada, ‘ò redor do meu jardim.
– Não chames pelos teus moços que criados são de mim.
– Pois, s’eles são teus criados, porque me tratas assim?
– Onde ‘stá o anel de ouro que contigo reparti?
Onde ‘stá a tua metade, pois a minha vê-la aqui.
2. Versão de Matela (concelho de Vimioso), distrito de Bragança. Editada por Leite
em 1958.
– Porque não cantas, Helena, à sombra dessa nogueira?
– Meu pai já é morto, meu marido está na guerra.
– Quanto deras, ó Helena, a quem o aqui trouxera?
– Dava a maior vacada que tenho na Serra da Estrela.
– Quanto deras mais, Helena, a quem to aqui trouxera?
– Dava a maior carneirada que tenho na Serra da Estrela.
– Não dês nada, ó Helena, não dês nada, Primavera,
Teu pai já é morto, teu marido está na guerra.
Não te lembras de marido, pois estou eu nesta terra?
– Cala-te aí, atrevido, que eu para isso não falei!
O dia do meu casamento, honrada eu fiquei!
Por fim, é preciso acrescentar que Pere Ferré teve inúmeros colaboradores, cujos nomes aparecem na página de rosto de cada um dos volumes. Também acabou publicando, com Cristina Carinhas, um quinto volume, este somente da bibliografia que resultou do projeto do pesquisa, agora indo quarenta anos além: Bibliografia do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-2000), editado em Madri pelo Instituto Universitário Seminário Menéndez Pidal, Universidad Complutense de Madrid, em 2000.
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Referência. Pere Ferré. Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna.Versões publicadas entre 1828 e 1960. 4 volumes. Lisboa : Fundação Calouste. Gulbenkian, 2000.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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