Que diálogo há entre ecos e ruídos?

As facilidades de exposição e o fluxo de narrativas nas práticas cotidianas, proporcionadas pelas tecnologias e redes de comunicação, passaram a redesenhar os lugares de sociabilidade e a redefinir uma série de questões de ordem estética, política e social. Essa produção e circulação de enunciados e subjetividades trazem marcas de voyeurismo, de ativismo, de jornalismo, de amadorismo etc. que, é preciso dizer, propicia um campo de vigilância difusa em que o fluxo de informações no ciberespaço se torna um foco privilegiado de monitoramento por diversos setores e com diferentes propósitos: inclusive na criação do ‘efeito bolha’, mencionado no texto do professor Wanderley Geraldi aqui no blog.

A “bolha de filtros” é uma expressão utilizada para explicar o fato de que redes sociais usam algoritmos para definir as atualizações mais importantes aos usuários e, dessa maneira, tendem a fornecer gradualmente conteúdo que se alinhe aos interesses e opiniões deles. Assim, cada pessoa fica isolada em sua ilha de preferências, e se verá cada vez mais fechada dentro de uma esfera de informações diminuta, apartada de quem não pensa como ela.

Essa questão soa como um novo frame para um conto muito conhecido:

Muitos anos atrás, havia um imperador que gostava de roupas bonitas, mais do que qualquer outra coisa no mundo. Na verdade, vestir-se ocupava todo o seu tempo… De qualquer forma, a vida era alegre na cidade. Estrangeiros chegavam a toda hora, e um dia, apareceu uma dupla de espertalhões. Bem, isso é o que eles eram, mas se diziam tecelões. Diziam também que o pano que teciam, além de uma beleza estonteante, tinha propriedades mágicas: tanto no tear como transformado em roupas, era invisível para quem não estivesse à altura de seu posto ou para os muito estúpidos.

– Excelente! Pensou o imperador.

– Eis a minha chance de descobrir quais dos meus súditos não servem para os postos que ocupam, e poderei separar os espertos dos tolos. Sim! Esse pano tem que ser tecido e transformado em roupas imediatamente.

E deu aos impostores uma grande quantia em dinheiro para que pudessem começar o trabalho.

Na mesma hora os tratantes montaram o tear e agiram como se estivessem trabalhando com afinco. Mas, na realidade, não havia nada no tear… (e, assim, continuaram fingindo que trabalhavam, pedindo mais e mais dinheiro).

Passado um tempo, o imperador mandou um súdito – o primeiro-ministro – ver como andavam os trabalhos. Não foi ele próprio, por receio de não conseguir ver o tecido.

‘Deus nos acuda!’, pensou o velho. ‘Não consigo enxergar pano algum’… Mas não disse nada… ‘Será que sou incapaz para ser ministro? Nunca me considerei incompetente… Não, não, não posso dizer que não consigo ver o pano.’…

Pouco tempo depois, o imperador decidiu enviar um conselheiro honesto para verificar como estava indo o trabalho… Mas aconteceu com ele a mesma coisa que acontecera com o ministro… Então, ele admirou o tecido que não podia ver:

– Sim, sim, muito lindo… cores esplêndidas… magnífico desenho! E relatou ao imperador que a estampa do tecido era magnífica.

A notícia do maravilhoso tecido logo correu pela cidade.

Finalmente, o imperador resolveu ir vê-lo com seus próprios olhos… ‘Isso é terrível!’, pensou o imperador. ‘Não consigo enxergar nada nos teares! Serei estúpido?… E então, ele falou:

– Que tecido charmoso… lindo! Tem nossa total aprovação! E o imperador deu a cada um dos trapaceiros uma condecoração honorária e o título de Oficial do Tear da Corte Imperial.

Na véspera da grande procissão, os farsantes ainda trabalhavam em sua tarefa imaginária: a confecção da roupa…

Finalmente anunciaram: – A roupa está pronta! – E o imperador dirigiu-se aos aposentos… Os trapaceiros continuaram:

– Se sua Alteza Imperial fizer a gentileza de tirar a roupa que está usando agora, teremos a honra de vesti-lo com o novo traje; pode ver o efeito neste grande espelho… O imperador virava-se de um lado e de outro em frente ao espelho.

– Como está elegante! Como lhe cai bem! – murmuravam os cortesãos.

– Que tecido rico! As cores são esplêndidas! Vocês já viram manto mais magnífico? – ninguém ousava admitir que não via nada…

E assim o imperador saiu andando majestosamente na procissão, debaixo do esplêndido dossel. As pessoas nas ruas ou nas janelas gritavam coisas como ‘Essa roupa nova é maravilhosa!’, ‘Como ele está magnífico!’, ‘Que elegância!’. Pode imaginar? Ninguém ousava admitir que não conseguia ver roupa alguma. Isso significaria que essa pessoa era idiota, ou que não servia para seu posto.

Na verdade, nenhum dos deslumbrantes trajes do Imperador jamais havia sido tão elogiado. Então, num momento de silêncio, ouviu-se uma voz de criança, intrigada:

– Ele não está vestindo nada!

– Sshh! – disse o pai da criança. Essas crianças falam cada bobagem!

Mas um sussurro espalhou-se pela multidão. ‘Uma criança ali disse que o imperador está nu’, ‘O imperador está nu!’ Logo todos murmuravam: – Ele está nu! Finalmente, o próprio imperador achou que eles poderiam estar certos. Mas aí pensou. ‘Se eu parar agora, vou estragar a procissão e isso não pode acontecer’. Então ele continuou caminhando, mais altivamente que antes. Quanto aos cortesãos, continuaram carregando a cauda do manto que não existia.

Fazemos parte de um público para o qual as noções de dialogismo e polifonia são mui caras. O que temos para o presente é pensar tudo isso considerando, por exemplo, a comunicação nas redes sociais. O fato é que, por ser algo novo, falta muito para compreendermos tudo isso. Mas, antes de tudo, é bom lembrarmos que a tal bolha existe – e ela só piora.

Cristina Araújo escreve neste Blog às segundas-feiras

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Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.