Por José Kuiava
Eis a questão. Para responder esta pergunta genial da Globo, melhor e mais justo seria invertê-la ao contrário. Virar do avesso. Assim: “que Brasil você não quer para o futuro?” E a Globo, precisamente no começo do ano das eleições presidenciais no Brasil, revela mais uma vez sua genialidade inventiva e seu coração generoso: dá curso de graça, na tela da Globo, para quem quiser aprender a gravar um video no celular. Para você tirar uma fotografia de si mesmo e gravar sua voz, por você mesmo ou por um amigo seu, a Globo ensina passo a passo essa técnica ultramoderna. E mais, você pode ser o representante, o porta-voz, da sua cidade, uma das 5.570 cidades do Brasil. Você pode representar e falar em nome de milhares, centenas de milhares e até milhões de brasileiros na tela da Globo. Maravilhoso.
Para não perder esta chance, fique atento às dicas. Primeiro, você precisa escolher uma hora do dia, escolher o lugar, o mais bonito da sua cidade – uma praça, os monumentos mais pomposos, o teatro, o shopping… Escolhidos o dia e o lugar, agora você assiste a aula do professor Ari Peixoto. “Eu estou na Praça do Pacificador, em Duque de Caxias, atrás está o Complexo Cultural Oscar Niemeyer. Nós queremos ouvir a opinião de cada um dos 5.570 municípios do Brasil. Você pode ser o porta-voz da sua cidade gravando um vídeo no celular, sempre de dia. Você pode pedir a um amigo seu que grave o vídeo para você com o celular sempre deitado, na horizontal. Pode fazer com o celular mesmo, veja se você está enquadrado e se está aparecendo o lugar que você escolheu para fazer a gravação. Você tem 15 segundos para dar o seu recado. Comece a gravação dizendo o seu nome todo, a cidade de onde você está falando e aí você diz pra gente: que Brasil você quer para o futuro” (http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/01/grave-um-video-pelo-celular-dizendo-que-brasil-voce-quer-para-o-futuro14.html – 27/01/2018).
Você não acha espetacular esta aula? Em apenas 15 segundos, isso mesmo, 15 segundos, você disse para todos os telespectadores da Globo “que Brasil você quer para o futuro”! Você acabou com os cientistas e professores de história, de sociologia, de economia, que escrevem teses e livros científicos inacabados, que ministram aulas durante meses, anos, décadas e séculos sem fim e não conseguiram ainda fazer entender a todos “o Brasil que queremos e precisamos”. Agora, você sem pesquisar, sem investigar, sem escrever disse em 15 segundos. Assim você é um gênio, igual aos gênios da Globo.
Só que tem uns detalhes que eu não falei no começo e são condições imprescindíveis. Para você filmar seu corpo e gravar sua voz, você precisa ser bem apessoado ou apessoada. Precisa ser bonito ou bonita. Ter um corpo elegante – padrão de beleza em vigência – de preferência bem penteado ou penteada, vestido ou vestida rigorosamente de acordo com os moldes e padrões da moda e, acima de tudo, de riso ridente. Precisa ter um celular de última geração que vale mais de mil reais. Sendo assim, você precisa pertencer a uma classe social media para cima. Mas cuidado, porque um corpinho assim, bem vestido e na última moda, pode ser uma bela ilusão. A não ser que você seja um alienado ou alienada a serviço de quem te explora.
Agora, pensemos nos 13 milhões de desempregados, dos mais de 45 milhões que matam a fome com o bolsa família, os mais de 60 milhões de trabalhadores vivendo com salário mínimo, os milhões de trabalhadores da roça, os vendedores nas ruas, os dependentes químicos e outros milhões de brasileiros que não tem a beleza corporal no padrão da Globo. Teríamos milhões de rostos suados, sujos, pele enrugada, cabelos despenteados, boca sem dentes, roupa suja, rasgada, sem o celular indicado, etc, etc, etc. Eles, necessariamente, teriam que dizer “que Brasil não quero para o futuro”. Isso em 15 segundos. Para dizer o nome completo e a cidade onde mora e trabalha já se foram 5 segundos. Aí, sobram 10 segundos. E viva os gênios! “Ligue pra gente. Ligue pra gente. Ligue pra gente”.
José Kuiava escreve neste Blog às quartas-feiras.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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