Que baita herança!

Não resisto a retomar meu gauchês: baita, grande, muito grande, mais que grande herança a carregar…

É que estamos em fim de ano, e todo o fim marca um começo. Para infelicidade do começo, ele tem que carregar a herança recebida, queira ou não. Aliás, esta a forma de vingança dos mortos sobre os vivos: serem carregados por eles… até que estes vivos sejam mortos e se vinguem dos novos vivos que os carregarão, nesta roda sem fim (ou que esperamos seja sem fim, apesar dos esforços muitos pouco humanos para que o fim chegue logo!).

Pois mais um ano se vai, se esvai e deixa herança. E que herança carregará 2020: um ano eleitoral, de eleições quase paroquiais. Prefeitos e vereadores. A familícia, tendo já um vereador federal, tentará federalizar o que seria paroquial. Mas os pastores de todas as igrejas neopentecostais continuarão a mandar em sua paróquia, em sua comunidade… e teremos mais uma vez a eleição de eleitos assim abençoados. E como eles mandam o que o bispo manda, e como o bispo manda o que o fundador manda, e como o fundador – aquele que cobra o pedágio para o caminho para o Senhor – tem suas relações marcadas e mascaradas com a familícia, o municipal que tinha se tornado paroquial, será federal.

As narrativas serão da mesma ordem. E não faltaram mentiras… e mentiras que juram que a mentira é verdade, como aquela professora paulistana que jurou de pés juntos que teve em suas mãos a mamadeira de piroca enviada para sua escola (certamente, para tal juramento deve haver alguma explicação psicanalítica, talvez tenha pego o que lhe faltava…).

2019 herdou de 2018 a política como mentira. 2020 herdará de 2019 a política como mentira oficializada. E porque não há ninguém melhor do que a família para mentir (depois se desmentir, para mentir novamente e assim sucessivamente), o pleito de 2020 será federalizado.

Mas esta é a herança menor que terá pelas costas o próximo 2020, que já vem azarado. Há pior: o ano herdará Paulo Guedes!!! E é aí que mora o perigo. Ele ainda não entregou toda a fatura, então continuará no comando, e continuará até vender tudo. De modo concentrado. O que no Chile os neoliberais levaram anos para implantar, aqui será às pressas e muito mais mal feito.

Quando os brasileiros descobrirem que terão que pagar pelo balde de água que pegarem da chuva – como pagam já os chilenos, porque as águas todas por lá estão privatizadas, incluindo as águas das chuvas – então será tarde para reverter: os contratos internacionais precisarão ser mantidos! Este será o mantra… Ainda mais se forem confirmadas as andanças das alianças, trazendo para o lado de cá lideranças ímpares como Marta Suplicy (e, quem sabe, Michel Temer). Dando estes as tintas, 2020 não só herdará: produzirá uma herança ainda maior!

De aliança em aliança, de frente em frente, lá vamos nós um dia nos unirmos todos numa “Aliança pelo Brasil”. Mas então, o melhor mesmo será pegar a bala para por no símbolo e dar um tiro no peito!!!

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.