Num artigo muito antigo, nosso querido e saudoso Prof. Luiz Antônio Marcuschi, analisando as estratégias jornalísticas de introdução da fala do outro – verbos dicendi – fez notar que estes verbos apontam avaliações ora sobre o sujeito cuja voz está sendo relatada, ora sobre o assunto que se relata. Mas também definem que ATO praticou originalmente o falante, segundo o discurso de quem o relata.
Nas estratégias jornalísticas, as formas de introdução da fala de alguém expõe, sem dizê-lo, uma avaliação. Assim, dificilmente numa página policial, quando um assassino confesso ou um suposto criminoso diz alguma coisa, sua fala jamais será introduzida por expressões como “considerar”, “ponderar” ou semelhantes. Estes sempre “dizem” ou no máximo “declaram”. Uma autoridade, no entanto, pode ter sua fala introduzida por “ponderar” (FHC, por exemplo, sempre pondera…); um delegado “considera”; um juiz sentencia, julga, define…
Num exemplo simples e hipotético, imaginemos que João é chefe de uma secção em que trabalham Pedro e José. Pedro se encontra com João, e este lhe diz:
– Preciso falar com José, enxergando-o, por favor, avise.
Pedro, encontrando José, lhe diz:
– João mandou você ir falar com ele…
À afirmação da necessidade de “falar com”, Pedro transformou em ordem, levando em conta as relações hierárquivas. E ordem para José. Se tivesse dito:
– João mandou dizer que quer falar com você…
teríamos uma situação diferente: o mandado foi Pedro (e este interpretou como ordem o imperativo na fala de João: AVISE). Numa e noutra situação, a expressão “mandou” adquire matizes distintos. Significados distintos.
Pois estamos diante de uma situação desta ordem: que ato afinal praticou o Comitê de Direitos Humanos da ONU, numa decisão liminar, para garantir direitos reconhecidos internacionalmente, inclusive pelo Brasil, por tratados assinados e tornados leis internas?
Na nota inicial, o Comitê “request” que o Brasil tome todas as medidas necessárias para garantir os direitos políticos de Lula. Na nota pública da ONU para a BBC (leio em https://www.bbc.com/portuguese/amp/brasil-45196783 ), diz-se The UN Human Rights Committee has requested Brazil to take all necessary measures to ensure that Lula can enjoy and exercise his political rights while in prison, as candidate in the 2018 presidential elections.
Temos, portanto, um discurso proferido e um discurso relatado. Com o emprego de “require” e de “request”. Na nota, temos mais: The technical name for this request is “interim measures”.
No Google Translator, temos o seguinte para o verbo “request”:
Traduções de request
Substantivo | |||
o | pedido | request, application, demand, solicitation, suit | |
a | solicitação | request, solicitation, application, asking, requisition, canvass | |
a | petição | petition, application, request, appeal, suit, prayer | |
a | instância | instance, request, instancy, urgency | |
a | requisição | request, requisition, recovery, repair, impressment | |
o | requerimento | application, request, requirement, petition, motion, requisition | |
a | demanda | demand, request | |
Verbo | |||
solicitar | request, apply, seek, solicit, invite, petition | ||
pedir | ask, ask for, request, seek, demand, beg | ||
rogar | entreat, request, petition, implore, solicit, obtest | ||
requerer | require, request, apply, claim, need, petition |
Com base nesta listagem de sinônimos, não se pode dizer que “request” é exigir, determinar (como alguns estão traduzindo). Mais apropriadamente, o ato de fala praticado foi de PEDIDO, de SOLICITAÇÃO, de DEMANDA. A questão passa então a ser outra: uma liminar proferida por um organismo internacional (dada para garantir direitos, sem que o mérito tenha sido analisado) solicitando, pedindo (request) tem que valor? Quando um juiz pede, solicita esclarecimentos num processo, é um pedido que pode não ser obedecido??? Algum delegado se arriscaria a recusar um pedido de Sérgio Moro? (Não aconteceria, porque este só manda, mas pensemos na hipótese.)
Temos, portanto, uma questão linguística muito interessante. Paulo Sérgio Pinheiro, que foi ministro do governo FHC, e que é membro do Comitê da ONU, interpreta que se trata de uma exigência de que o país deve tomar medidas para garantir o direito de Lula de ser candidato. Aloysio Nunes, nosso suposto ministro das relações exteriores, diz que é recomendação e que o país não é obrigado a atender pedidos, solicitações… Como ele conhece pouco a linguagem diplomática, deixemos que este não diplomata continue a usar seus coturnos nas relações internacionais…
O governo brasileiro (até Temer é mais apto em relações do que o tacanho senador tucano de São Paulo) diz que encaminhará o pedido, a solicitação, o requerimento (lembrem-se, quem requer, quer) ao Judiciário. Passa a batata quente… não é tão burro quanto Aloysio Nunes.
Alguém tem alguma dúvida de qual intepretação predominará nos reinos da justiça, onde mandam e desmandam os deuses?
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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