Quando o terror emerge dentro da escola, é preciso insistir nas causas evidentes do fracasso da escolarização

NOTA DO EDITOR: Antes de falar sobre o horror que novamante aparece em uma escola de Goiânia, cujos fatos são ainda obscuros, posto o texto de Cristina de Araújo sobre o que sequer se tem pensado nas escolas e está na base do problema. Seguiremos abordando o tema sem a exploração sensacionalista da imprensa e sem os conselhos banais de especialistas que sempre surgem de forma fútil e vaga para não abordar o que poderia ser relevante. 

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 “A forma e os estilos da enunciação ocasional são determinados pela situação e pelos integrantes mais imediatos, já os estratos mais profundos da sua estrutura são determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor”. (M. Bakhtin)

Cada vez mais, tenho me convencido de que quando alguém formula um enunciado, ele expressa seu horizonte conceitual e sua visão de mundo que resultam das relações que o constituem. Não porque ele seja o princípio causador de tais relações, tampouco porque sua intenção significativa possa determinar ou limitar o que ele quis dizer, mas porque há um lugar nessa enunciação que pode ser ocupado por diferentes enunciadores. Entretanto, é necessário que se compreenda o que se espera dele ao assumir uma posição no ato enunciativo de que faz parte.

A percepção do cotidiano como fonte de investigação, em toda sua complexidade e implicações teóricas, conduz o olhar para as especificidades das conversas tanto em relação ao local de sua ocorrência e integrantes quanto em relação à dimensão histórica responsável pelo acúmulo e pela exterioridade do discurso. 

Tenho aqui um registro de conversa que, em primeira análise, possibilita enfocar como a atribuição de papéis a sujeitos da esfera escolar podem exercer influência na mobilização do enunciado e/ou no reconhecimento de subjetividades:

* Contexto da conversa: Início de uma aula de português.

* Registro da conversa

Professora: Gente, peguem aí a folha da aula passada, pra gente ler…

Aluno 1: Eu não gosto de ler livro de terror… nem de suspense 

Aluno 2: Prefiro um livro de fatos, de coisas reais.

Professora: Ler isso também é importante e tem outra função. E pra que serve a literatura? Primeiro que eu acho que nem todo mundo leu…

((Nesse momento alguns alunos começam a falar quase ao mesmo tempo e só dá pra entender algumas intervenções da professora)) 

Aluno 3: Essa aula é muito chata!

Professora: Vocês estão muito no mundo real… a literatura não tem que ser real. Vocês estão pensando só na verdade. 

Aluno 1: Mas um filme não cansa, ler isso cansa. 

Aluno 2: É, cansa mesmo, um texto desse tamanho! 

Aluno 4: Ah, professora, e esse final é muito chato, nada a ver…

Professora: Vamos fazer assim, já que vocês estão achando o final sem graça, vamos escrever um final pra ele! 

Alguns alunos:  Não, não! Ah, professora, tem graça não! 

                           Você quer é um livro de 60 páginas?!!

                                     A culpa é da que reclamou do fim do conto!

Professora: Não, gente! Não é culpa de ninguém. Eu ia pedir pra vocês fazerem mesmo, eu só aproveitei que vocês já reclamaram.

Aluno 4: Não sei que que vocês tinham que reclamar!

Essa conversa, além de demonstrar um conflito referente aos objetos de ensino na aula de português (a leitura e a leitura de ficção), também destaca a relação que os alunos fazem do gostar/ não gostar do texto com a responsabilidade que a professora tem de promover uma aula. É como se eles tomassem a aula como uma proposta que pudesse ser aceita ou recusada, manifestando tais sentimentos em suas reclamações. A primeira tensão gira em torno do tipo de leitura a ser feita, e distinguem fatos e coisas reais de algo que eles chamam de terror e de suspense, e que a professora nomeia literatura. Em seguida, polemizam com o texto em questão caracterizando-o como cansativo e chato. Observe-se o percurso: Essa aula é muito chata. Ler isso cansa. Esse final é muito chato. Sob a alegação de que não estariam gostando apenas do final, a professora propõe outra atividade: – Já que vocês estão achando o final sem graça, vamos escrever um final pra ele! Mas a reação é o tumulto, pois a nova proposta soa como punição por terem reclamado: – A culpa é da Fulana que reclamou do fim do conto.

Algumas regularidades discursivas aparecem, apesar de não serem tratadas explicitamente. Uma delas é a de que não basta reclamar, é preciso que cada um faça sua parte: “Primeiro que eu acho que nem todo mundo leu”. Outra, é que mesmo tendo do que reclamar, em algumas circunstâncias, é melhor não fazê-lo: “Não sei que que vocês tinham que reclamar!”. Por fim, como já mencionado, há uma revisitação à caracterização do texto literário como algo descolado da vida cotidiana, com pouca utilidade e distante das experiências de leitura dos alunos.

Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.

Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.