Ouvimos com certa frequência que uma das funções da escola é formar cidadãos e, para isso, nas diferentes disciplinas dos currículos escolares são apresentados objetivos de aprendizagem diversos e específicos das áreas do conhecimento. Consequentemente, uma proposta curricular deixará entrever o perfil de profissional que se espera para seu cumprimento. Nesse sentido, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que é um documento de caráter normativo que define o conjunto de aprendizagens consideradas essenciais e obrigatórias ao longo da Educação Básica, objetiva orquestrar políticas e ações referentes à formação de professores, à avaliação, à elaboração de conteúdos educacionais e ao delineamento de alunos.
Desde a implantação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em 1998, as instituições de ensino superior vêm sendo convocadas, por meio de Resoluções, a reformularem os projetos pedagógicos das licenciaturas para, dentre outras coisas, aumentar a carga horária em componentes denominados práticos (Estágio Curricular, Prática de Ensino, Prática como Componente Curricular, Prática de Disciplina etc.). Isso porque, em tese, o futuro professor precisa saber “colocar em prática” o que aprendeu. E o que ele aprende? Ah, ironicamente, isso também precisa estar alinhado ao que o mercado de trabalho espera dele! Sem contar que ele precisa “passar” pelas diferentes correntes teóricas da ciência linguística.
Já nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998, 2000), as competências referentes à disciplina de Língua Portuguesa aparecem organizadas em três conjuntos de competências: “comunicar e representar, investigar e compreender, assim como contextualizar social ou historicamente os conhecimentos” (BRASIL, 2000, p. 15). Na Base Nacional Comum Curricular (2017, p. 15), essa perspectiva é mantida ao afirmar que os resultados das aprendizagens precisam se expressar e se apresentar como “possibilidade de utilizar o conhecimento em situações que requerem aplicá-lo para tomar decisões pertinentes”, e para isso, a BNCC de Língua Portuguesa está organizada em cinco eixos organizadores: oralidade, leitura, escrita, conhecimentos linguísticos e gramaticais, educação literária. Estes eixos estão vinculados às Unidades Temáticas propostas ano a ano, acompanhadas dos Objetos de Conhecimento e às Habilidades:
Área de Linguagens
Competências específicas de Linguagens
Componente Curricular: Língua Portuguesa
Unidades Temáticas >> Objetos de Conhecimento >> Habilidades
Além do problema de coerência entre as Unidades Temáticas/Eixos Organizadores, Objetos de Conhecimento e Habilidades, é visível uma seleção de conteúdos gramaticais como alvo exclusivo de habilidades. Tomemos um exemplo do que está proposto ao 6º ano do Ensino Fundamental:
Unidade Temática (UT) Eixo Organizador |
Objeto de Conhecimento |
Habilidades |
(UT) Morfossintaxe Eixo conhecimentos linguísticos e gramaticais |
Flexões do substantivo, do adjetivo e dos verbos regulares |
Analisar a função e as flexões de substantivos e adjetivos e de verbos nos modos Indicativo, Subjuntivo e Imperativo: afirmativo e negativo. |
Pergunto, onde ficam a reflexão sobre o uso da língua, a análise linguística (e mesmo gramatical) como estratégia para o desenvolvimento produtivo das práticas de oralidade, leitura e escrita? Que gêneros possibilitam o trabalho com as flexões de substantivos, adjetivos e verbos?
Inicialmente, o que me parece é que a BNCC sistematiza uma organização cumulativa dos tópicos gramaticais a serem analisados do mais simples ao mais complexo, da palavra à oração, da oração ao período. Com relação às nomenclaturas gramaticais, não defendo que se deixe de ensiná-la, já que o saber científico implica na classificação de fenômenos, mas que se faça uma reflexão consciente e sistemática da língua e que não se privilegie o mero ensino de classificações descontextualizadas. Acaba restando ao professor lidar com os embates teóricos visualizados em sua formação para, então, tentar construir com seus alunos uma reflexão linguística que, mais que classificar os fenômenos linguísticos, possa promover práticas com/sobre a linguagem.
Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.
Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.
Comentários