Problematizar o futuro não é perder a memória do que há de vir

 Para mim o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão, a utopia é também um compromisso histórico. (Paulo Freire)

O objetivo deste ensaio é correr o risco de trazer para a criação das práticas políticas e pedagógicas um conjunto de conceitos formulados em outros contextos; ou mais concretamente ainda, organizar uma sequência de vozes extraídas propositadamente de seus contextos para atravessá-las por uma interrogação militante: a problematização do futuro, com o suposto fim das meta-narrativas, implica o esquecimento do amanhã em nome da ‘surfagem’ e leveza do deixar-se levar pelo presente? Mais especificamente ainda, o diálogo que gostaria de estabelecer tomar como fonte privilegiada, polifonicamente mediada por contrapalavras procedentes de outros lugares, o pensamento de Paulo Freire entrecruzado pela arquitetura do pensamento de Bakhtin, para com eles interrogar esta tão difícil passagem do pensamento sobre as origens para o pensamento que se propõe criar o novo sem perder compromissos de vizinhança com utopias passadas.

Sem dúvida alguma, os riscos maiores destas aproximações dizem respeito à noção de sujeito que resulta [ou se constrói a partir] da concepção de linguagem como atividade constitutiva com que se pode escapar da tranquilidade do estruturalismo linguístico que inspirou inúmeras reflexões sobre o sujeito e delas extraiu uma prima filosofia que define um modo de ‘movimento estático’ de estar no mundo. Em nome dos deslizamentos constantes, dos movimentos sem direções, propõe-se um radical desmantelamento de valores das origens, fazendo-se entender que o questionamento de essências fundantes implica estancar qualquer memória de futuro próximo. À recusa do exercício de uma subjetividade racional, crítica e consciente, soma-se a recusa da construção de formas de convívio capazes de incorporarem em sua arquitetura as instabilidades dos seres humanos, as suas multiplicas personalidades potenciais e suas condições de possibilidade de produzir acontecimentos ou reagir a acidentes que lhes sucedem. Para recusar a fixidez das origens, deitam-se fora água e bebê, recusando-se também a utopia de um futuro humanizado e humanizante.

Esboçados os riscos, o desejo é o de construir um lugar capaz de escapar aos questionamentos recentes à “pedagogia crítica”, contribuindo com alguns elementos de construção de uma concepção de sujeito que, por não aceitar qualquer essencialidade intocável, qualquer “alma governante”, qualquer princípio ou origem a não ser sua constante mobilidade e mutabilidade, tem que assumir uma ‘memória de futuro’, cuja concretização não resultará do ‘deixar-se levar pela onda’. Ao contrário, o futuro exige atitudes de pilotagem (Stoer, Magalhães, inédito). E esta parece implicar desenhos utópicos nos presentes, irrealizáveis como totalidade no futuro, porque este exigirá sempre novos esboços, porque o futuro “é uma tarefa permanente de transformação” (Freire, 1979).

Certamente uma tal construção não se fará sem os andaimes que nos fornece o pensamento de Paulo Freire: a conscientização “consiste no desenvolvimento crítico da domada de consciência”. A tomada de consciência é apenas o primeiro produto da adaptação ao disponível, resulta da “aproximação espontânea que o homem faz do mundo […]. A este nível espontâneo, o homem ao aproximar-se da realidade faz simplesmente a experiência da realidade na qual ele está e procura. Esta tomada de consciência não é ainda a conscientização. A conscientização é isto: tomar posse da realidade; por esta razão, e por causa da radicação utópica que a informa, é um afastamento da realidade. A conscientização produz a desmitologização”. (Freire, 1979)

O pensamento crítico deste final e início de século tem ramificações de toda ordem, ora apontando para “as tensões dialécticas que informam a modernidade ocidental” (Boaventura Sousa Santos, por exemplo, e sua trilogia de tensões: entre regulação social e emancipação social; entre Estado e sociedade civil e entre o Estado-nação e o que designamos por globalização), ora apontando para as crises dos paradigmas científicos, reintroduzindo o tempo, o acontecimento e o acaso enquanto a modernidade apostava na previsibilidade inscrita nas “leis da natureza” (Ilya Prigogine, por exemplo, e a reintrodução da seta do tempo e sua irreversibilidade que demanda o reencantamento do mundo), ora apontando para a construção de subjetividades autônomas, para o exercício da cidadania e para a construção de uma ação contra-hegemônica (conceitos tão presentes nos textos da pedagogia crítica quanto nos movimentos sociais contra-hegemônicos, de Paulo Freire a Edgar Morin, do MST ao movimento anti fast food).

Todas estas direções remetem a concepções de sujeito, de forma explícita ou implícita, nem sempre partilhadas, mas todas elas com um denominador comum: compartilham crenças e certezas nas possibilidades de ação dos sujeitos sociais, que se definem de formas distintas relativamente aos condicionamentos históricos. Estas direções podem tomar diferentes fundamentos para o sujeito – uma vocação à eternidade? uma vocação à solidariedade? uma vocação à subjetividade eticamente fundada, razão convertida em paixão pelo humano de cada um e de todos? Mas nenhuma destas direções dispensa ou se dispensa de uma tomada de posição.

A essas concepções e a compartilha da crença de outros possíveis (para usar uma clave paulofreireana, outros inéditos viáveis) opõem-se não somente discursos pragmaticistas, com interesses a defender, em que a noção de “adaptação aos tempos” é o condão mágico do pensamento sobre a constituição das subjetividades, como se os tempos não fossem “regíveis”, mas regentes. Estes discursos podem ser encontrados na imprensa, na política, nos acordos de uma economia planejada para a liberdade dos mercados, nos planejamentos educacionais: o discurso hegemônico sempre encontrou porta-vozes eficientes.

Também no próprio campo crítico essas concepções e sua compartilha básica de possibilidades de construção de um outro futuro são postos sob suspeita (2). As críticas endereçadas ao pensamento crítico pelas análises foucaultianas, pelas desconstruções derridianas, necessariamente devem ser postas sob escrutínio, porque não representam mais uma diferença de opção entre campos de luta, mas resultam de um refinamento necessário às concepções para não cairmos no engodo da inovação que repete e reproduz os mecanismos mesmos que quer destruir.

Para exemplificar estas posições críticas, gostaria de retomar aqui uma passagem de Deleuze. A citação será longa, mas necessária para retomarmos a força propulsora da conscientização a partir de novas concepções sobre o sujeito, sem perder com isso que o futuro se constrói como possibilidade do que há de vir e não como produto constante de uma mutação contínua e sem rumos.

Se hoje em dia o pensamento anda mal é porque, sob o nome de modernismo, há um retorno às abstrações, reencontra-se o problema das origens, tudo isso… De pronto são bloqueadas todas as análises em termos de movimentos, de vetores. É um período bem fraco, de reação. No entanto, a filosofia acreditava ter acabado com o problema das origens. Não se tratava mais de partir nem de chegar. A questão era antes: o que se passa “entre”? E é exatamente a mesma coisa para os movimentos físicos.

Os movimentos mudam, no nível dos esportes e dos costumes. Por muito tempo viveu-se baseado numa concepção energética do movimento: há um ponto de apoio, ou então se é fonte de um movimento. Correr, lançar um peso, etc.: é  esforço, resistência, com um ponto de origem, uma alavanca. Ora, hoje se vê que o movimento se define cada vez menos a partir de um ponto de alavanca. Todos os novos esportes – surfe, windsurfe, asa delta – são do tipo: inserção numa onda preexistente. Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma maneira de colocação em órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, “chegar entre” em vez de ser origem de um esforço.

E no entanto, em filosofia se volta aos valores eternos, à ideia do intelectual guardião dos valores eternos. É o que Benda já criticava em Bergson: ser traidor da sua própria classe, a classe dos clérigos, ao tentar pensar o movimento. Hoje são os direitos do homem que exercem a função de valores eternos. É o estado de direito e outras noções, que, todos sabem, são muito abstratas. E é em nome disso que se breca todo pensamento, que todas as análises em termos de movimento são bloqueadas. Contudo, se as opressões são tão terríveis é porque impedem os movimentos, e não porque ofendem o eterno. Sempre que se está numa época pobre, a filosofia se refugia na reflexão “sobre”… Se ela mesma nada cria, o que poderia fazer, senão refletir sobre? Então reflete sobre o eterno, ou sobre o histórico, mas já não consegue ela própria fazer o movimento. (Deleuze, 1992, p. 151-152)

Se a noção de conscientização demanda um compromisso histórico e se a inserção crítica na história implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo, que criam sua existência com um material que a vida lhes oferece (Freire, 1979), então encontramos nessa afirmação uma oposição entre os pontos de vista defendidos pela pedagogia crítica e pela crítica deleuziana (e de outros pensadores contemporâneos). Seria possível encontrar um outro posto de observação a partir do qual poderíamos construir pontes entre o fazer o deixar-se levar, entre criar a existência e o se fazer aceitar pelo movimento de uma grande onda? Em resumo, entre surfar e pilotar?

Parece-me que é precisamente nos percursos dessa busca de respostas a perguntas que não se deixam apagar, porque são perguntas constantes de respostas provisórias, que poderíamos encontra categorias com que reconstruir nossas noções de sujeito, sem perder esperanças num momento propício à desistência e à inação política. Sem defender qualquer perenidade a não ser o movimento permanente e, nesse sentido, os direitos do homem não são valores eternos, mas valores a que outros se acrescentam, no movimento da história, reconfigurando cada um deles – talvez possamos encontrar no ‘modelo’ não estruturalista de funcionamento da linguagem algumas pistas para uma inserção no movimento, sem com isso recusar a existência de pontos de energia material e social.

Um dos processos mais notáveis da linguagem é sua vocação constante à repetição e à mudança. Se não houvesse repetição, a cada nova enunciação, teríamos que construir os recursos expressivos mobilizáveis para sua realização: isso impediria qualquer possibilidade de partilha de sentidos. Se não houvesse mudança, toda enunciação seria citação constante dos mesmos enunciados. A linguagem não funciona nem sobre a permanência dos recursos expressivos, nem sobre a criação ininterrupta que não produz história. Por isso a linguagem é uma atividade constitutiva de si mesma, uma sistematização em aberto, produto do passado e projeção do futuro. Talvez possamos extrair desse modo de funcionamento uma primeira lição: nenhuma sociedade é uma estrutura em cujo movimento temos que nos inserir, mas uma arquitetura que demanda enunciações singulares a cada momento histórico em que o que se repete muda de sentidos e o que se altera adquire sentidos no que se repete. Indeterminação com história, movimento com futuro.

Em consequência, para aceitarmos a linguagem como atividade constitutiva, somos forçados a reconhecer que a relação entre o mundo da cultura, em que os sentidos circulam, e o mundo da vida, em que os atos são executados – incluindo entre eles nossos atos discursivos – é também uma relação constitutiva, em que um mundo somente existe porque constituído pelo outro. Um mundo mudando o outro permanentemente. Reencontramos o movimento, mas agora com história, que funda raízes não para garantir o futuro, como se dele fosse a origem, mas para tornar possível o próprio movimento comi criação e não repetição do já dado. Tal como os recursos expressivos permitem a enunciação sem, no entanto, fixar-lhe os limites de sentido, permite enunciados nunca antes ditos e jamais repetíveis em sua singularidade.

Acrescentemos a esta concepção de linguagem as implicações que dela extraem Bakhtin na filosofia e Vygotsky na psicologia e reencontraremos a questão da construção da consciência e da conscientização. Se nossa consciência é sígnica, está repleta de signos nunca neutros porque são produtos da história, somos todos produtos da história: mutáveis, múltiplos e singulares. Irrepetibilidades e responsividades irreversíveis. Não podemos alegar qualquer álibi para a existência: não podemos dizer “não estamos aqui”. E estar aqui é uma resposta a si mesmo e ao outro, com o qual necessariamente estamos e a quem dizemos “estou aqui”. Conscientizar-se é ser esta resposta à alteridade.

Dispúnhamos, no passado, de certas palavras pouco precisas, mas extremamente mobilizadora. Seria paradoxal, em nome da inexistência da fixidez de valores eternos, exigir precisão matemática de conceitos abstratos como “estado de direito”, “direitos do homem”, “justiça social”, etc. A concretude, produto da totalidade, é sempre uma abstração a nos mostrar que estamos sempre incompletos em nossos conceitos e em nossas vidas. Não sabemos com precisão que toque, que palavra, que gesto produzirá o encontro com outro toque, outra palavra, outro gesto e, na faísca deste encontro, escreverá em sulcos no ar uma outra imagem, uma terceira palavra capaz de criar uma compreensão nova, exigir um investimento intelectual e desencadear este encanto que é o pensamento crítico. Pensar exige liberdade. Pensar exige silêncios e vazios. E terá valido a pena pensar, mesmo que o pensado se esvaia no momento mesmo de sua emergência.

Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas.

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim este atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios.

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha foz tivesse um formato de canto.

Porque eu não sou da informática

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.

(Manoel de Barros. O Apanhador de Desperdícios)

 

 

Referências bibliográficas

Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 1992.

_____________. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza (para uso didático e acadêmico). Título original: Towards a Philosophy of the act. Austin : University of Texas Press, 1993.

Barros, Manuel. Memórias inventadas: a infância. São Paulo : Planeta, 2003.

Deleuze, Gilles. Os intercessores. L’Autre Journal, n. 8, outubro de 1985, entrevista a Antoine Dulaure e Clare Parnet. In. Conversações 1972-1990. Rio de Janeiro : Ed. 34, 1992.

Freire, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.

Geraldi, João W. Paulo Freire e Mikhail Bakhtin. O encontro que não houve. In. Normam Sandra de Almeira Ferreira (org) Leitura: um cons/certo. São Paulo: Cia. Ediotra Nacional, 2003.

Morin, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Lisboa: Instituto Piaget, [s.d.] Original de 1997.

Silva, Tomaz Tadeu (org) Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras.  Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

Stoer, Stephen e Magalhães, António M. Mapeando decisões no campo da Educação numa época de globalização. Texto inédito.

 

Notas

  1. Este texto foi escrito para o IV Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, realizado na Universidade do Porto em 2004. Em certo sentido, ele é uma resposta muito provisória a certos incômodos com algumas teses pós-modernas, de alguns pós-modernos, que decretaram o fim da história, o fim das grandes narrativas (utopias neste ‘sistema de pensamento’ são narrativas, isto é, uma narrativa do que não há). Minha preocupação na época, talvez possa ser resumida numa pergunta: sem qualquer sonho que mostre o caminho, como caminhar? Certamente a resposta daqueles que decretaram o fim da história, é não caminhar, viver a onda do presente, entrar na onda, deixar-se levar pela onda. E meu texto encarando “os grandes pensadores” é uma tentativa de problematizar esta “narrativa” que se limita ao presente. Creio que apresentei este mesmo texto num evento sobre o pensamento crítico na Universidade Católica de Pelotas, mas não lembro o ano. O texto foi publicado nos Anais do IV Encontro em 2004, em publicação eletrônica da Universidade do Porto. Depois foi publicado na Revista Ecos, Ano V, número 5, da Universidade Estadual de Mato Grosso. E ainda autorizei sua publicação em Barbosa, Adriana M. de Abreu e BIONDI, Silvana Oliveira (org) Olhares sobre o texto: o lugar do texto e o texto como lugar (Anais do 1 Fórum Nacional Discurso e Textualidades). UESB, Jequié, 2007, p. 8-17. Infelizmente, do ponto de vista material, me sobrou somente um exemplar da revista Ecos. Incluí-o na coletânea de textos meus Ancoragens – Estudos Bakhtinianos, São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
  2. Do embate, certamente o debate entre Telmo Cracia e Rui Gomes (Revista Educação, Sociedade e Culturas 18, Porto, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, 2002) é um exemplo recente, que retomamos no texto “Paulo Freire e Mikhail Bakhtin: O encontro que não houve” (Geraldi, 2003). [já publicado neste blog]

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.