Primeiro Amor, de Ivan Turguêniev

Esta novela do escritor russo retoma o tema eterno do amor. E neste caso, do arrebatamento do primeiro amor, aquele que se sofre querendo sofrer e sendo doce sofrer. Pela capacidade do autor em desvendar este tempo vivido normalmente no fim da adolescência e no começo da juventude, penetrando no fundo do coração do jovem Vladimir Petróvitch.

A narrativa é introduzida por um pequeno texto em que se dá notícia do fim de um serão familiar: o dono da casa, um convidado e Vladimir. A proposta é que cada um conte, neste fim de noite, o seu primeiro amor. O primeiro a narrar diz que não teve primeiro amor, mas começou direto pelo segundo pois cortejou sua amada como se já tivesse experiência… o dono da casa apenas diz que nada tem de especial a narrar. Vladimir, por seu turno, diz que seu primeiro amor nada tem de comum, mas que não é bom narrador. Promete escrever e ler suas história…

Começa então a narrativa, em primeira pessoa. A datcha era composta por uma casa senhorial, com duas pequenas alas, à esquerda ficava uma pequena fábrica de papel de parede barato; à direita, ainda vazia, foi logo alugada por um nobre falida, a princesa Zassekina. E, obviamente, este princesa tinha uma filha linda, encantadora, brincalhona, de olhos penetrantes: Zinaída.

Desde que a vê no jardim fica tomado, apaixonado. Teve a oportunidade de se aproximar porque sua mãe, embora considerasse que a família da princesa não fosse gente comme il faut, sentiu-se na obrigação de convidar para um almoço. Quem foi transmitir o convite foi Vladimir. E desde então torna-se frequentador assíduo do salão pobre da princesa, onde se dá o “reinado de Zinaída” sobre seus jovens pretendentes… grupo de que agora começa a fazer parte. O ingrediente é importante para o enredo, porque ao mesmo tempo que o jovem apaixonado é recebido por aquela que é objeto de seu amor, também encontra os concorrentes a quem tem que temer…

As brincadeiras, as noites no salão, os tempos taciturnos dos ciúmes e das incertezas vão preenchendo o enredo. Um resumo, mesmo trazendo pequenos detalhes, é injusto. Somente lendo a novela. Mas a leitura também nos informa sobre como se divertiam os jovens da pequena nobreza no século XVIII/XIX, mesmo quando falida; como os passeios pelos jardins (no caso, o jardim Nieskútchni), as cavalgadas durante o dia. Na verdade, cria-se uma ‘rotina’ na vida do jovem que abandona os estudos e os livros, pois se preparava para o ingresso na universidade.

Dentro deste enredo, há a salientar a família em que vivia: filho de pais cujo casamento fora arranjado por questões econômicas, tinha como modelo um casal de vida quase separada, e fica-se sabendo por entrelinhas que o pai sempre teve amantes… A relação entre o pai e o filho é extremamente fria, cuja mais longa descrição aparece nesta passagem, precisamente um momento de rememoração em que o narrador não mais conta o que está acontecendo, mas reflete sobre suas personagens:

Estranha influência tinha meu pai sobre mim, e estranhas eram as nossas relações. Ele quase não se preocupava com minha educação, mas nunca me ofendia. Ele respeitava a minha liberdade e era até – se posso me expressar assim – cortês comigo… No entanto, não permitia que eu me aproximasse dele. Eu o amava, eu o admirava, ele me parecia um modelo de homem – e, Deus meu, com que paixão eu me ligaria a ele, se não sentisse constantemente a sua mão, que me afastava. Em compensação, quando queria, ele sabia, quase num instante, com uma palavra, um gesto, despertar em mim uma confiança ilimitada. Minha alma se abria – eu tagarelava com ele como com um amigo sensato, um conselheiro condescendente… Depois ele me abandonava do mesmo modo repentino – e sua mão me afastava de novo; carinhosa e suave, mas me afastava. (p. 40)

Na sequência desta rememoração analítica, aparecem alguns ensinamentos paternos: “Pegue sozinho o que você puder, mas não se entregue em outras mãos; pertencer a si mesmo – aí está o truque da vida”.  Sobre a liberdade, diz que ela nos pode dar: “A vontade, vontade própria, e poder, que é o melhor do que a liberdade. Se você souber querer, será livre e poderá comandar”.

Enquanto isso, os jogos de salão persistiam; os tempos de recolhimento taciturno também; as noites mal dormidas e os sonhos com a amada. Numa destas noites, sem conciliar o sono, Vladimir vai para o jardim da casa e vê um movimento na parte do jardim que cabia à princesa. E o que vê é Zanaída caminhando apressada; logo após um vulto encoberto, que não sabe quem seja, lhe segue… Eis confirmado o triângulo amoroso: o apaixonado sem chances; a mulher (que é bem valha que ele) e um outro!

E a este outro misterioso que Zanaída entregou seu coração… e isso começa a se tornar evidente para todos os seus pretendentes nos jogos do salão, no reino de Zanaída: a princesa começa a não aparecer, a dizer-se doente, etc.

Num de seus passeios mais longos, a pé, Vladimir primeiro ouve, depois vê, escondido, que passeiam a cavalo sua amada e seu pai. Coincidência? Um encontro fortuito? Redobra-se o sofrimento: ciúmes do pai? Haveria algo entre eles.

Ao final do enredo, já saídos da datcha, Vladimir já na universidade, tudo fica claro: fazem pai e filho um passeio a cavalo, mas de repente o pai desce, entrega-lhe o animal e pede-he que o espere junto a um estoque de madeiras. Demorando muito, Vladimir entra pela pequena rua por onde fora seu pai, e o vê à janela de uma casa conversando com uma mulher. Reconhece Zanaída, e mais: em certo momento o pai se irrita, toma o chicote e bate em Zanaída! Depois disso, entra na casa, demora-se e volta sem o chicote…

Descobre então o filho não só a quem efetivamente amava Zanaída, mas também a relação sadomasoquista que havia entre seu pai e sua paixão de juventude, paixão já apaziguada a estas alturas do enredo.

Há aqui, neste primeiro amor assim narrado, duas questões sobrepostas: aquela da paixão juvenil e aquela da morte do pai como forma de liberdade. Lembremos, Vadimir amava o pai; mas Vladimir também amava Zanaída. Os dois amores morrem juntos. Eis o dramático da novela.

Do ponto de vista formal, há também algo muito interessante. Como o narrador enuncia num tempo presente fatos de um passado, narrativa provocada pelo serão em que leu sua história, ao longo do narrado aparecem suspensões do tempo do narrado para aparecer o tempo da enunciação. Tomemos apenas um exemplo. Ele vinha comentando sua adoração por Zanaída, e abre o parágrafo seguinte com

Ó, tímidos sentimentos, ó, doces sons, bo0ndade e tranquilidade da alma comovida, alegria evanescente das primeiras emoções do enternecido amor… Onde estais, onde estais?

Referência. Ivan Turguêniev. Primeiro amor. Tradução de Tatiana Belinky. -Porto Alegre : L&PM, 2008.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.