O mar, em nossa pequena praia, murmureja. Como não sou parte do “povo das águas”, escuto mas não compreendo o que o mar tem a me dizer. Somente percebo o marulhar calmo: Barequeçaba é uma praia de raras ondas, quase uma piscina com águas que morrem na areia. E uma areia dura, boa para caminhar, plana: as caminhadas podem ser de tênis. Eu ponho o pé n’água: preciso que ao menos um pouco de litium me entre pelos poros, já que o mar é uma bacia de litium, mas mesmo morando cá, continuo eu às voltas com minhas receitas dos controlados.
Caminhar pela praia permite captar cenas. Particularmente porque esta é chamada uma praia de velhos e crianças. Muitos avós com netos; mas também muitos casais novos com seus filhos mais novos, novíssimos. Alguns nem andam, outros recém ensaiam os primeiros passos – todos vão para a água.
Noutro dia encontro pai e mãe encorajando uma menina de seus 2,5 anos a enfrentar a areia molhada, pisar com todo o pé: ela caminhava na ponta dos pés e os pais incentivavam para que pusesse todo o pé “no chão de areia molhada”. Como pais, ensinando a voar com os pés no chão, firmes, inteiros.
Mas há cenas que acabrunham. Verdadeiros abracadabras. Cenas de terror.
Falo de uma do último domingo, quando a praia recebe o que aqui chamam de “turista”: os donos de casas de veraneio e seus convidados ou seus inquilinos – afinal, o mar não está para peixes nestes tempos bicudos e a classe média que votou para que tudo isso fosse o que é, agora põe placas de “aluga-se para fins de semana e para temporada” em frente às casas, algumas delas com placas no alto dizendo “Presente de Deus”. Tudo indica que os votos não levaram deuses ao olimpo do Planalto, somente pó de traque dos gritos insistentes de MITO, MITO, MITO. Escafedeu-se. Agora alugam as casas.
Pois neste domingo a praia tinha movimento – aqui, nem na alta temporada a praia fica cheia. Faço minha caminhada. Me chama atenção um menino feliz pulando supostas ondas, atirando-se na água, voltando para areia. Brincava sozinho e em rebuliço. Ria.
E riso traz outros risos. Na volta já encontro no mesmo espaço, não um menino feliz, mas vários mais ou menos da mesma idade, entre 3 e 4 anos, brincando juntos, correndo um atrás do outro, jogando-se na água, rindo, felizes.
De repente vejo uma mulher vindo em passos apressados para perto dos meninos. Enxergo ainda de longe. Ela trazia algo nas mãos. Imaginei: vai estragar a brincadeira, vai levar o filho para um suco qualquer. Mãe estraga-prazeres.
Chegamos mais ou menos juntos, ela vindo na vertical, eu caminhando na horizontal. Então assisto o horror: ela trazia uma metralhadora cuja bala é água. Entregou ao filho para que brincassem com os amigos. Já trazia a metralhadora carregada. O menino pegou o brinquedo, arremedo do símbolo do mal, e começou a “atirar” nos amigos. Desapareceu o sorriso: ele sério, estava brincando de matar. E matar é coisa séria. Os amiguinhos corriam, caiam n’água e ele gritava: matei, matei! A mãe aplaudia a seriedade da morte que seu rebento agora causava em amiguinhos assustados. Quem sorria não eram mais as crianças, era a mãe. Os meninos desarmados fugiam, o matador, sério, matava!
Interrompi a parada… não queria mais ver o que antes alegrava minha passagem. Continuei rumo ao fim da praia, junto ao morro que a cerca pela esquerda – há outro à direita, não se preocupem. O da esquerda, habitado e habitável; o da direita inabitado e inabitável.
Mas não pude deixar de pensar: A MÃE PREPARA SUZANO. A mãe, por acaso. Poderia ter sido o pai, que provavelmente comprou o brinquedo para a praia.
Tragédias são sempre construídas pela vontade dos homens e das mulheres.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Linda crônica!
parabéns pela ligação da brincadeira com Suzano.
A classe média sendo a classe média… cocriadores da realidade que tanto criticam…