Depois de um justo recesso, as escolas começam a retomar o ano letivo e todos os seus compromissos como instituição de ensino e como empresa. As campanhas publicitárias, que buscam cativar a clientela potencial, aprimoram-se em revisitar o imaginário social sobre ensinar/educar/ instruir/preparar o aluno. A escola, além de poder ser o “segundo lar” ou “clube de amigos”, promete possibilitar que o aluno “aprenda a escrever sua própria história” ou que “chegue mais longe”, já que poderá “descobrir o líder que pode ser” ou, simplesmente, “saber o que quer ser quando crescer”.
Um enunciado certamente é feito de signos, entretanto, o que mais interessa é sua condição mesma de enunciado, isto é, sua capacidade de ser elo e de se articular com outros, formando uma corrente ideológica. Em um enunciado buscamos identificar pelo menos três coisas: a que ele faz referência, a existência de um sujeito que pode efetivar tal enunciação, a própria materialidade linguística que explicita as associações e correlações com outros enunciados. Então, descrever um enunciado é apreendê-lo como acontecimento, como algo que irrompe num certo tempo, num certo lugar.
Observar os discursos que circulam em torno da esfera escolar acaba funcionando como uma atividade de conhecimento que permite apreender as conexões estratégicas entre enunciados, a construção de conceitos e a subjetivação que configura essa atividade social. Isso se deve ao fato de que o arranjo discursivo em torno do campo educacional assume características que refletem tantas outras práticas sociais que não se restringem aos muros da escola.
Quando uma instituição de ensino publica que “o professor é antes de tudo alguém que se doa, que ama as crianças, que acredita na sua nobre missão de ensinar”, em alguma medida, associa seu profissional a indivíduos rendidos ao amor e à doação, assim como tantos outros que se colocam nessa condição, ainda que como voluntários ou amigos da escola. E considerando que o enunciado não existe isoladamente, não é possível desvincular dessa descrição de professor alguma vocação altruísta (alguém que se doa) e missionária (nobre missão de ensinar). Ainda, a propósito do enunciado anterior, não há como ignorar que há um grande número de mulheres atuando em diferentes níveis de ensino, em especial nas séries iniciais, e que em outras enunciações já se correlacionou os signos tia e segunda mãe à professora, como alguém que pode amar e doar-se às crianças.
Há, também, instituição que propague que “educar é um dom que o professor demonstra através do próprio exemplo”, reafirmando que as pessoas passam a dedicar-se ao ofício de educadores em função de atender a um dom. O professor deve, então, oferecer uma prova de sua habilidade de educar demonstrando que recebeu uma graça especial para realizar seu trabalho, e não necessariamente uma formação acadêmica adequada. Por fim, entre as implicações do campo semântico relacionado ao dom, nada impede a inferência de que não convêm preocupar-se com o que será recebido em troca pela doação!
Os discursos produzem uma realidade histórica e política na medida em que eles mesmos são tecidos por uma série constitutiva de linguagem que é capaz de produzir subjetividades e que promove a indagação de dúbias estruturas em que se firmou a condução da lógica educacional e de muitas outras práticas. Quanto a ser exemplo?! Esse tem sido um tema bem delicado em nossa conjuntura política! Na epopeia de Homero, Ulisses precisou revelar a verdade sobre si por meio de uma prova de força que demonstrasse sua capacidade de resolver o tumulto em seu próprio átrio e sua habilidade de governar. Já na epopéia temérica, sórdidos herois! Ser exemplo? Ter habilidade para governar? Já morreram de overdose!
Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.
Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.
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