Por amor às cidades, de Jacques Le Goff

Da série livros para ler e ver I

Este livro resulta de uma longa conversação entre Le Goff e Jean Lebrun, que introduz na forma de perguntas ou curtos comentários os temas sobre as cidades da Idade Média e aquelas do mundo contemporâneo. A tese defendida pelo historiador é que nossas cidades de hoje estão muito mais próximas das cidades medievais do que estas estavam das cidades da Antiguidade.

A aproximação entre ambas se dará mais especificamente nas funções que exercem as cidades e no surgimento de uma gama variada de relações políticas. Se no campo a relação se dava entre o senhor, nobre e proprietário de terras, e os camponeses, sem qualquer outra intermediação, as cidades fazem surgir profissionais que tornam as relações muito mais complexas. Para o historiador, a divisão tripartite entre as produções primária (agricultura e pecuária), secundária (indústria) e terciária (serviços), esquece um conjunto bastante significativo de uma produção artesanal de pedreiros, carpinteiros, marceneiros, ourives, pintores etc. cujo trabalho se realiza, normalmente sob encomenda com produtos artesanais e únicos.

Não se trata de uma prestação de serviços, mas de uma produção de transformação sem ser em série como ocorrerá na indústria. Há, obviamente, prestação de serviços (estalagens, ensino – não só escolar, etc). E na cidade circula dinheiro, enquanto no campo permanecem as trocas diretas de produtos. Como existem inúmeras moedas, há necessidade de câmbio: surgem as bancas (donde vem “banqueiro”) normalmente pertencentes a judeus que passam também a fazer empréstimos sob penhora. Coube aos judeus esta função porque o exercício de outras profissões – exceto o da medicina – lhes foram pouco a pouco interditadas. Obviamente, é também nas cidades que sobrevivem os pobres, os fugitivos, os procurados nelas se escondem.

Mas será o conjunto de profissionais que na cidade medieval vai provocar novas relações de poder: as associações dos profissionais e o enriquecimento de alguns levarão a uma partilha do exercício do poder citadino, quando não a um “governo civil” responsável pelo executivo, com esvaziamento do poder do príncipe que se torna às vezes um poder moderador ou da distribuição da justiça.

Assim, as cidades tornam-se a sede do poder político: o príncipe nela constrói seus castelos e palácios (ainda que nem sempre viva na cidade o tempo todo), elas se tornam as sedes dos bispados com suas igrejas monumentais e os palácios episcopais; os burgueses enriquecidos erguem também seus palacetes.

Surgem os “centros” onde em geral estão as praças – que não é mais o fórum da cidade antiga mas um lugar de lazer, de manifestações culturais, de manifestações políticas. Como as cidades são muradas – uma das grandes funções da cidade é a segurança, dentro dela seus habitantes se sentiam mais seguros do que no campo onde viviam isolados – os espaços são muito valorizados, os preços dos terrenos do centro são altos. Assim começam a surgir: o centro valorizado; o seu entorno na forma de bairros, muitas vezes com suas próprias praças em frente a Igrejas e conventos; os subúrbios mais próximos aos muros onde residem os pobres. Só muito mais tarde, para fora dos muros, começa a aparecer uma “periferia” inicialmente com construções encostadas aos muros.

A cidade medieval é também o lugar das feiras. Embora possam acontecer na praça central, em geral as grandes feiras se realizam fora dos muros da cidade: uma feira é mais do que um mercado, nela se reúnem artistas, mambembes, cartomantes, lutadores… Mas só aparentemente as feiras recuperam o “fórum”: enquanto as feiras têm um caráter de acontecimento, o antigo fórum é permanente.

Desaparecem também as termas públicas, mas isso não significa que a cidade medieval era uma imundície. Pelo contrário, hábitos de higiene passam a ser cultivados e há mesmo cuidados que hoje chamaríamos de sanitários.

Para o historiador, duas instituições serão fundamentais na configuração da cidade: as ordens mendicantes que pregam na cidade e que nela constroem seus conventos (que muito frequentemente têm o poder de deslocar o centro ou criar um novo centro) e as universidades que atrairão para as cidades professores e estudantes, uma classe turbulenta de jovens em geral com boa renda, que farão avançar costumes e a cultura. Eles são financiados pelos pais, normalmente nobres do campo. Transcrevo aqui uma passagem de uma carta de um estudante seu pai:

Meu querido papai, a vida que levo aqui é muito instrutiva, mas eu não tenho mais um centavo, seria ótimo se você provasse que ainda me ama.

E mais surpreendente é o texto de propaganda quando da criação a universidade de Toulouse em 1229 a pedido do Papado para “combater a heresia depois da cruzada dos albigenses”. Ele foi redigido pelo célebre mestre universitário John Garlande que elogia a cidade, sua água, seu ar… e

…acrescenta coisas inesperadas num texto de um universitário do início do século XIII: as toulousianas seriam mulheres formosas, dando mesmo a entender que algumas delas não são demasiadamente ariscas.

Mas é no nível do comportamento das pessoas que distinguirá o citadino do camponês. É na cidade (civitas) que surgirá a civilidade, a polidez, o cavalheirismo. E também uma estética própria: enquanto a orientação espacial da idade antiga era horizontal, com valorização da direita, no mundo medieval a orientação se torna vertical, para o alto. E isto por duas razões: aquela do gótico de elevação para as alturas divinas e outra econômica: com as cidades muradas, serão as construções verticais, as torres, a saída para aumentar os espaços próprios num mundo fisicamente delimitados pelos muros: comparem-se as torres de San Gimignano e a verticalidade de Los Angeles. Mas trago para cá duas outras ilustrações, a primeira representação conhecida de uma paisagem urbana, um quadro de Ambrogio Lorenzetti, La cité, de 1346 (Siena, Pinacoteca Nacional) e um quadro de Rainer Fetting, Vue sud de Manhattan, de 1989:

(LEGENDA DA PUBLICAÇÃO: Este quadro é a primeira representação conhecida de paisagem urbana: é uma Manhattan do século XIV. Ambrogio Lorenzetti, La Citè, 1346. Siena. Pinacoteca Nacional – p. 122)

(LEGENDA DA PUBLICAÇÃO: Nova York e a estética urbana da verticalidade sempre inspiram os pintores do século XX.  Rainer Fatting.Vue Sud de Manhattan (Nova York), 1979. Coleção do Pintor – p. 123)

E eis aí as aproximações com a cidade moderna que é vertical, com bairros, subúrbios e periferias. Há, no entanto, uma distinção: a cidade moderna se expande, se esparrama, entra “campo adentro”. E em função desta ‘conquista’ de espaço, surgem nas cidades contemporâneas uma gama de novos “centros” e o velho centro cada vez mais, nas grandes cidades, vai se tornando “o centro histórico”, uma espécie de museu a céu aberto.

Resta falar da edição primorosa deste livro: com inúmeras ilustrações. Muitas delas retiradas de iluminuras de difícil acesso para leitores comuns.

 

Referência: Jacques Le Goff. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun; tradução de Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes – São Paulo : Editora da UNESP, 1998.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.