Poder, dever e querer. Em tempos de exceção, só há querer

É com grande desconforto que comunico aos leitores o falecimento, no Brasil, da Justiça, assassinada pelo sistema judiciário brasileiro. Houve aqueles que tentaram salvá-la quando tudo ia por água abaixo, mas suas forças foram insuficientes. Contra posição de classe e contra a força desta posição, não há argumentos que persuadam muito menos que convençam. Mesmo aquela que sabe que quem não tem poder não pode delegar este poder a outrem, procurou uma tábua de salvação ou de domesticação. Mais ou menos como aquela velha história da ovelha: todas se jogavam pelo precipício e como todas iam, mesmo enxergando o precipício, lá se foi ela… como uma “maria vai com as outras”, em nome do colegiado das ovelhas, e um colegiado apertado. Votou contra o que pensa, votou pelo precipício.

Em poucas horas, em termos históricos, foi decidida a violação do dever em função do querer, por voto de minerva de quem, na posição que ocupa, deveria levar em conta princípios históricos da aplicação do direito – in dubio pro reo. Preferiu obedecer ao script que lhe passaram seus patrões. Votou contra o réu mesmo havendo dúvida razoável, afinal era metade contra metade! Não pasmem, é aquela mesma pessoa que para chegar até onde chegou, “pintou” o pensamento para ter as cores da época, num oportunismo descarado: liderou manifestos contra a privatização da Vale, berrou, aconteceu. Chegou ao lugar que queria e imediatamente descoloriu o pensamento, pintou-o novamente com as corres berrantes das excepcionalidades e do poder sem limites constitucionais.

O imbróglio jurídico que estamos vivendo tem a ver com modalizações, especificamente com as modalizações deônticas que remetem a questões de obrigatoriedade, poder, necessidade (numa tipologia mais ou menos comum, as modalizações se dividem em 1. Aléticas, tem a ver com a existência, 2. epistêmicas com o saber; 3. Deônticas (há ainda outra a considerar, as modalizações que envolvem o “querer” sempre colocadas no interior das deônticas, mas que tem um caráter bastante próprio, porque envolvem o desejo. Nem temos ‘fundido” um termo para isso; temos no português somente a expressão “abulia”, mas não “bulia”, de que poderia resultar “modalizações búlicas”. Mas isso é uma discussão acadêmica a ser realizada).

Voltemos a nosso imbróglio. Ele começou a ser construído quando um juiz tomou como prova de propriedade – e de propriedade recebida indevidamente por propinas advindas de ações inespecíficas em tempos indeterminados – a afirmação de um delator de que “o apartamento estava destinado ao presidente Lula”. “Destinação” passou a ser “é propriedade”; e do “é propriedade” passou para indevida; e “indevida” foi explicada por ações ilegais, não especificadas, cometidas em tempos indeterminados. Eis a sentença hoje irrecorrível. E por que se tornou irrecorrível? Tem a ver com um “dever” que tinham o juiz e desembargadores de condenar, obrigação que lhes impôs quem? Ou tem a ver com um “querer” condenar, ditado por um desejo inocultável?

Se tudo isso não bastasse, o imbróglio se tornou maior ainda quando o STF permitiu (isto é, na modalidade do “pode” que é diferente do “deve”) que houvesse prisão antes do trânsito em julgado, em situações não previstas pela Constituição Federal. Aqui a coisa se complicou mais ainda: o STF tem o dever de fazer cumprir a constituição. Ora o objeto deste dever é um discurso sujeito à interpretação. Como interpretar a cláusula pétrea – isto é, só modificável por outra Assembleia Constituinte – que não permite esta prisão? Ora, tinha o STF o “poder” de transmitir um poder que não tinha? Donde adviria este “poder”? Da pressão popular? (consideram pressão popular a opinião publicada, não a opinião pública, porque se levassem em conta esta, teriam que levar em conta as pesquisas eleitorais…) Isso seria ilegal. E inconstitucional. Então foi necessário investir (no sentido de dar vestes jurídicas) a um querer (modalidade da bulia): nós (maioria simples do STF) QUEREMOS que seja assim. Ora, a distância entre um “querer” e um “poder” é quilométrica, mensurável em termos de anos-luz!

No entanto, em regimes de exceção – lembremos, o TRF-4 criou jurisprudência julgando que um juiz de primeira instância pode usar de excepcionalidades à lei, isto é, não cumprir a lei – o QUERER se tornou PODER.

E bem mandados, os ministros Alexandre Morais, Luís Roberto Barroso, Luís Fux (aquele do auxílio moradia que valeu uma vaga de desembargadora para sua filha), Rosa Weber, Edson Fachin e Carmen Lúcia QUERIAM a imediata prisão de um líder popular, o mesmo que indicou quase todos eles para o STF. Assim, o QUERER, tornado PODER, transformou em DEVER, um dever de que precisam prestar contas. A quem?

………………………………………………………………………..

Siga as publicações de Wandeley Geraldi em: https://www.passagensoblogdowanderleygeraldi.com/

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.