Há autoridades perplexas. Porque fatos extraordinários estão acontecendo na república declarada em fins do Século XIX, incrementada no Século XX, circunstancialmente abatida por golpes de estado e rotineiramente inexistente pelo patrimonialismo típico da cultura dominante brasileira desde as capitanias hereditárias: o público é dos privilegiados. Com alguma concessão à classe média, que age em público com a coisa pública como se fosse propriedade sua – quanto mais fazem isso, mais seus membros se julgam de elite, partícipes do poder.
Enquanto nós ficamos boquiabertos, as autoridades ficam perplexas. E às vezes chegam a manifestações frementes de indignação. Acontece que há vozes falando, falando e o véu está se rasgando. Afinal, boquiabertos, mas não mentecaptos. Antes imbecilizados pela mídia tradicional, agora reagem como não imbecis proferindo discursos desconexos e atrevidos. Foi assim que se foi construindo a perplexidade dos de cima.
Admitido, por portaria presidencial, que o trabalho escravo já não é mais escravo, houve gritaria. Aí veio à público um ministro do STF, o militante do PSDB, Gilmar Mentes a estranhar. Dizia o ministro que seu trabalho era intensivo, estafante, mas nem por isso ele o considerava um trabalho escravo. Mesmo que uma colega sua tenha, monocraticamente, suspendido a portaria do trabalho escravo, o ministro Gilmar Mentes apoia seus termos e mostra que exploração intensiva, estafante, quem sofre é o ministro, não seus empregados na fazenda. Não há trabalho escravo, exceto no STF!
Depois vem a Ministra dos Direitos Humanos, Dra. Luislinda Valois, exigir seus salários ministeriais. Acontece que ela é desembargadora aposentada, e somando os dois salários chegaria a mais de R$ 61 mil… E na reclamação, dizia estar sendo submetida a trabalho escravo como ministra. Justo ela, que sendo dos Direitos Humanos, deve estar na linha de frente ao combate ao abuso dos direitos! Escravatura de uma ministra! É perplexidade para ninguém botar defeito. Depois, desistiu do feito. Uma injustiça que agora pode ser reparada: o STF acaba de garantir que não há mais teto quando se tratam de dois empregos, permitidos pela Constituição! Teve até voto (Ricardo Lewandowski) dizendo que o não pagamento integral dos duplos salários configuraria trabalho escravo… Agora, Luislinda, faça valer a decisão dos ministros, passe a exigir seus salários de ministra de estado. Quer mais? Sempre há!
Na ordem dos fatos ordinários, veio a decretação de prisão dos parlamentares Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi, todos da ALERJ, envolvidos ao que tudo indica, numa longa e tradicional roubalheira– por isso mesmo, já “jurisprudência” firmada em que ninguém deveria mexer. Pois não é que tudo é encaminhado para a própria ALERJ decidir o destino dos deputados, seguindo decisão e modelo referendado pelo STF. E seguindo a prática usual, desde os engavetamentos do Senado no caso Aécio e dos arquivamentos na Câmara nos casos Temer, os ínclitos deputados salvaram os colegas e Picciani sentou-se novamente na cadeira de presidente de Assembleia. Mas não é que o senhor ministro Marco Aurélio de Melo ficou perplexo! O mesmo ministro que salvou Aécio Neves, que lhe devolveu o mandato, que votou pelo encaminhamento da questão aos senadores, este mesmo ministro fica perplexo porque lhe seguem o exemplo! Dá para entender? Não sei desenhar perplexidade tão complexa!
E secundando a perplexidade, seguiu-lhe o ministro Luiz Fux (aquele mesmo que o deputado surtado Paulo Ramos chamou de “Luiz Foda-se”) para dizer, em entrevista na BBC, que a decisão dos deputados estaduais foi “lamentável”, “vulgar” e “promíscua”. E que será revista no STF… é que dependendo do freguês, não é só o Gilmar Mentes que rasga as regras, é todo o STF que age segundo interesses políticos do momento. O senador de PSDB pode ficar no Senado; os deputados estaduais devem se submeter ao Judiciário! Afinal, onde estamos? Numa ditadura do Judiciário, não é? Então, que vergonha é essa!!!
Requentando perplexidades, o Blog do Fucs (Estadão) republica afirmações de um lídimo representante dos altos poderes, no ano de 2013, o Dr. Ives Gandra: “Não Sou: – Nem Negro, Nem Homossexual, Nem Índio, Nem Assaltante, Nem Guerrilheiro, Nem Invasor De Terras. Como faço para viver no Brasil nos dias atuais? Na …verdade eu sou branco, honesto, professor, advogado, contribuinte, eleitor, hétero… E tudo isso para quê?” (disponível em http://blog.opovo.com.br/portugalsempassaporte/nao-sou-nem-negro-nem-homossexual-nem-indio-nem-assaltante-nem-guerrilheiro-nem-invasor-de-terras-como-faco-para-viver-no-brasil-nos-dias-atuais/ ). Corria então o ano de 2013, e o golpe do impeachment já estava bem tecido… A republicação deste texto, em novembro de 2017, responderá a que desígnios? Será para lembrar que estão falando muito contra o Reforma Trabalhista? Contra a portaria do trabalho escravo? Tudo sem dar atenção à minoria privilegiada? Talvez isso venha à memória do Estadão por uma razão: estão querendo mexer com as propinas da mídia tradicional, esta minoria que comanda e que está sendo desrespeitada pelos tribunais da Espanha, da Suíça e dos EEUU! Seria isso?
E agora vem outra perplexidade nada lamentável. Eis que o Sr. Dr. Fernando Segóvia, novo diretor geral da PF, vem dizer que a mala de dinheiro entregue ao portador Ricardo Rocha Loures, indicado como tal por Michel Temer, a viva voz gravada, não é prova de nada!!! Mesmo tendo devolvido o valor – faltando um pouquinho que afinal ninguém é de ferro – agora se descobre que na mala não havia provas nenhumas… Tudo enganação do Rodrigo Janot!!! Afinal, Segóvia foi nomeado e remodelará e apressará as investigações, e nestas novas investigações, malas de dinheiro não são provas de nada. Seguramente, Geddel Vieira Lima está ofegante de tanta esperança que lhe abre o novo Diretor Geral da Polícia Federal: aquelas malas e caixas de dinheiros naquele apartamento também não provarão nada! Afinal, todo mundo pode guardar dinheiro em malas, e isso não é crime! Está tudo desenhadíssimo na lei.
Manda o bom jornalismo que se ouça o outro lado. Embora não seja jornalista, e este blog não tem pretensão de dar notícias, vamos ouvir o outro lado, o lado dos que não são autoridades perplexas com seu povo. E o outro lado fica por conta da pior notícia da semana que passou:
…um menino de 8 anos desmaiou de fome em uma escola pública na vizinhança dos palácios de Brasília. O agente de saúde do Samu que atendeu ao chamado de uma professora constatou a doença: falta de comida.
Valei-me São Josué de Castro (Recife,1908-1974), rogo ao médico e cientista pernambucano pioneiro na denúncia da fome como questão real da política, ainda nos tristes trópicos de 1946, depois de examinar operários que desmaiavam no chão de uma fábrica de tecidos no bairro da Torre, Recife. Sob a agulha da vitrola, o Chico Science & Nação Zumbi, free jazz sampleado das tripas do subdesenvolvimento, dá a letra: “Ô Josué eu nunca vi tamanha desgraça/ Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”.
Morador de um conjunto do Minha Casa, Minha Vida, no Paranoá Parque, o menino faminto estuda a 30 km da residência, no Cruzeiro, Distrito Federal. O caso foi noticiado pelo DF TV. Os governantes, como sempre, em suas notas frias e oficiais, lamentam o ocorrido.
Espero que a primeira-dama Marcela e a equipe do seu programa “Criança Feliz” atentem para a gravidade. Faço votos que a bancada do Congresso que tanto se escandaliza com a nudez artística, entre outras manifestações, se comova com a mais triste das notícias da semana. Ah se fosse apenas o menino da escola do Cruzeiro. Na mesma sala, palavra de professora, existem outros. A conta de somar é sem fim no Brasil devolvido à geografia da fome. (disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/17/opinion/1510950046_724120.html?id_externo_rsoc=TW_CC )
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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