PEDIDO QUASE UMA PRECE, de Manoel de Barros

 

A Nelson Nassif

Senhor, ajudai-nos a construir a nossa casa

Com janelas de aurora e árvores no quintal –

Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores

E ao crepúsculo fiquem cinzentas como a roupa dos pescadores.

 

O que desejo é apenas uma casa. Em verdade.

Não é necessário que seja azul, nem que tenha cortinas de rendas.

Em verdade, não é necessário que tenha cortinas.

Quero apenas uma casa em uma rua sem nome.

 

Sem nome, porém honrada, Senhor. Só não dispenso a árvore,

Porque é a mais bela coisa que nos destes e a menos amarga.

Quero de minha janela sentir os ventos pelos caminhos e ver o sol.

Dourando os cabelos e os olhos de minha amada.

 

Também a minha amada não dispenso, Senhor.

Em verdade ela é a parte mais importante deste poema.

Em verdade vos digo, e bastante constrangido,

Que sem ela a casa também eu não queria, e voltava pra pensão.

 

Ao menos, na pensão, eu tenho meus amigos

E a dona é sempre uma senhora do interior que tem uma filha alegre.

Eu adoro menina alegre, e daí podeis muito bem deduzir

Que para elas eu corro nas minhas horas de aflição.

 

Nas minhas solidões de amor e nas minhas solidões do pecado

Sempre fujo para elas, quando não fujo delas, de noite,

E vou procurar prostitutas. Ó Senhor, vós bem sabeis

Como amarga a vida de um homem o carinho das prostitutas!

 

Vós sabeis como tudo amarga naquelas vestes amassadas

Por tantas mãos truculentas ou tímidas ou cabeludas

Vós vem sabeis tudo isso, e portanto permiti

Que eu continue sonhando com a minha casinha azul.

 

Permiti que eu sonhe com a minha amada também, porque:

– De que me vale ter casa sem ter mulher amada dentro?

Permiti que eu sonhe com uma que ame andar sobre os montes descalça

E quando me vier beijar faça-o como se vê nos cinemas…

 

O ideal seria uma que amasse fazer comparações de nuvens com vestidos, e peixes com avião;

Que gostasse de passarinho pequeno, gostasse de escorregar no corrimão da escada

E na sombra das tardes viesse pousar

Como a brisa nas varandas abertas…

 

O ideal seria uma menina boba: que gostasse de ver folha cair de tarde…

Que só pensasse coisas leves que nem existem na terra,

E ficasse assustada quando ao cair da noite

Um homem lhe dissesse palavras misteriosas…

O ideal seria uma criança sem dono, que aparecesse como nuvem,

Que não tivesse destino nem nome – senão que um sorriso triste

E que nesse sorriso estivessem encerrados

Toda a timidez e todo o espanto das crianças que não têm rumo…

 

Senhor, ajudai-me a construir a nossa casa

Com janelas de aurora e árvores no quintal –

Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores

E ao crepúsculo fiquem cinzentas como as roupas dos pescadores…

(Manoel de Barros. Poesia completa. São Paulo : Leya, 2010)

 

 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.