A Nelson Nassif
Senhor, ajudai-nos a construir a nossa casa
Com janelas de aurora e árvores no quintal –
Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores
E ao crepúsculo fiquem cinzentas como a roupa dos pescadores.
O que desejo é apenas uma casa. Em verdade.
Não é necessário que seja azul, nem que tenha cortinas de rendas.
Em verdade, não é necessário que tenha cortinas.
Quero apenas uma casa em uma rua sem nome.
Sem nome, porém honrada, Senhor. Só não dispenso a árvore,
Porque é a mais bela coisa que nos destes e a menos amarga.
Quero de minha janela sentir os ventos pelos caminhos e ver o sol.
Dourando os cabelos e os olhos de minha amada.
Também a minha amada não dispenso, Senhor.
Em verdade ela é a parte mais importante deste poema.
Em verdade vos digo, e bastante constrangido,
Que sem ela a casa também eu não queria, e voltava pra pensão.
Ao menos, na pensão, eu tenho meus amigos
E a dona é sempre uma senhora do interior que tem uma filha alegre.
Eu adoro menina alegre, e daí podeis muito bem deduzir
Que para elas eu corro nas minhas horas de aflição.
Nas minhas solidões de amor e nas minhas solidões do pecado
Sempre fujo para elas, quando não fujo delas, de noite,
E vou procurar prostitutas. Ó Senhor, vós bem sabeis
Como amarga a vida de um homem o carinho das prostitutas!
Vós sabeis como tudo amarga naquelas vestes amassadas
Por tantas mãos truculentas ou tímidas ou cabeludas
Vós vem sabeis tudo isso, e portanto permiti
Que eu continue sonhando com a minha casinha azul.
Permiti que eu sonhe com a minha amada também, porque:
– De que me vale ter casa sem ter mulher amada dentro?
Permiti que eu sonhe com uma que ame andar sobre os montes descalça
E quando me vier beijar faça-o como se vê nos cinemas…
O ideal seria uma que amasse fazer comparações de nuvens com vestidos, e peixes com avião;
Que gostasse de passarinho pequeno, gostasse de escorregar no corrimão da escada
E na sombra das tardes viesse pousar
Como a brisa nas varandas abertas…
O ideal seria uma menina boba: que gostasse de ver folha cair de tarde…
Que só pensasse coisas leves que nem existem na terra,
E ficasse assustada quando ao cair da noite
Um homem lhe dissesse palavras misteriosas…
O ideal seria uma criança sem dono, que aparecesse como nuvem,
Que não tivesse destino nem nome – senão que um sorriso triste
E que nesse sorriso estivessem encerrados
Toda a timidez e todo o espanto das crianças que não têm rumo…
Senhor, ajudai-me a construir a nossa casa
Com janelas de aurora e árvores no quintal –
Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores
E ao crepúsculo fiquem cinzentas como as roupas dos pescadores…
(Manoel de Barros. Poesia completa. São Paulo : Leya, 2010)
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Que lindo! Parabéns pela escolha em nos alegrar sempre com seus textos ou escolhas que nos dão o alento necessário para continuarmos vivendo momentos tão cruciais em tempos incertos.
Tuas escolhas poéticas são bálsamo para minha vida, professor. Sofrimento, incertezas, minhas lágrimas… tudo passa a ter sentido quando te leio.