Para leitores atentos: paginação e perfídia dos jornalões brasileiros

Os jornalões brasileiros, cujos proprietários jogam na direita, sempre foram exímios na paginação de matérias para produzir efeitos de sentidos que lhes interessam. A FSP talvez leve o prêmio de mais sorrateira, fraudulenta e parcial. Alguns comentaristas e jornalistas de esquerda assinam crônicas em suas páginas. Com isso ela pode dizer que é um jornal plural, que abriga todos os pensamentos. Todos os leitores da FSP – deixei de sê-lo há muitos anos – sabem que a verdadeira linha editorial do jornal dos Frias conduz a opinião publicada para se opor a teses da esquerda. Não posso usar exemplos aturais da FSP, por não ser leitor deste jornal deste que percebi que ele não passava de um boletim partidário do PSDB.

Mas o Estadão não fica para trás. Não chega ao virtuosismo. Mas segue de perto. E obviamente seu ideário está a anos-luz das perspectivas de esquerda. Na edição de ontem – quinta-feira, 28.07.2016 – há um exemplo perfeito da paginação e da perfídia.

Antes de falar da página, chamo atenção para um fato. Na página A2, o jornal abre espaço para “quem” quiser publicar, claro que sob a leitura e censura do jornal. E chama a isso de “Espaço Aberto”. O espaço não é aberto nem aqui nem na Conchinchina. Um dos artigos publicados hoje, não por acaso, de autoria do Prof. José Eduardo Faria (Faculdade de Direito da USP), começa apontando para o papel contramajoritário do STF: cabe à Corte colocar as coisas nos seus eixos jurídicos, mesmo quando a maioria (da população, da opinião publicada, dos deputados, dos senadores… seja lá qual maioria, isso não importa) estiver a favor de uma perspectiva, quando esta não estiver dentro das normas constitucionais. Como a Constituição de 1988 abriga inúmeros princípios consubstanciados na forma afirmativa de direitos da cidadania, abre-se o espaço para a interpretação dos membros da Corte. Até aí, tudo bem. O interessante é que o final do artigo acaba levantando uma posição contrária ao que defende na primeira parte. Quando a maioria é a favor, o STF deveria levar em conta este fato…

São claras as duas alusões no campo político contemporâneo, visados pelo articulista, mas não afirmados no artigo: 1. A maioria (dos parlamentares? Da opinião publicada? Da população?) é a favor do impeachment. Logo, se alguma questiúncula jurídica chegar ao STF, este deve acatar o ponto de vista da maioria e sacramentar o impeachment. 2. Como há pesquisas mostrando que a maioria é a favor da convocação de eleições gerais, o STF deve manter seu papel contramajoritário, recusando a tese porque fere algo (leis? interesses políticos?). É óbvio que um artigo assim seria imediatamente aceito no tal “Espaço Aberto” do Estadão.

Mas vamos à página A4, a primeira página de política. Em todas as edições, à esquerda em duas colunas está a tal de “Coluna do Estadão”, em pequenas notas que imitam a criatividade do velho Pasquim com suas dicas. Depois dele, colunas deste tipo apareceram em inúmeros jornais impressos. À direita, desta vez ganhou espaço o PT, para uma reportagem sobre as divergências do uso da expressão golpe no caso do impeachment durante as eleições municipais deste ano. A reportagem está cheia de citações em discurso direto, entre aspas, de membros da direção do PT e de lideranças. A divergência claramente aparece em função da pretensa desejada distância do candidato à reeleição, Fernando Haddad, tanto de Dilma quanto de Lula e a suposta recusa de municipalizar a questão nacional do golpe parlamentar. A reportagem cita: Dilma; Florisvaldo Souza (Secretário de Organização do PT); Aldo Fornazieri, (Diretor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), com dois enunciados longos, o primeiro contrário à nacionalização da campanha municipal e o segundo apontando que quem deve se defender de denúncias é o PT e não o candidato; o deputado federal José Guimarães (PT-CE) e o senador Lidenbergh Farias (PT-RJ).

Como se vê, em pouco espaço quatro políticos e um cientista político (supostamente neutro, porque cientista) são chamados a falarem na reportagem. Logo abaixo, na mesma página, outra matéria: “Discordâncias atrasam Carta aos Brasileiros”. Bom, agora a divergência segundo a matéria seria em função dos dois cenários possíveis: o impeachment ser recusado no julgamento “jurídico-político” do Senado, ou o impechament ser dado como favas contadas. Se o primeiro cenário se tornar mais claro, Dilma diria aos “brasileiros” que manteria a equipe econômica de Michel Temer (para agradar o mercado que está contentinho); se o segundo cenário for mais nítido, a carta “trará apenas diretrizes à esquerda”.  Mas nesta reportagem somente uma liderança política é citada: Carlos Henrique Árabe (Secretário de Formação Política), e nele o que afirma o dirigente é que a tal carta não é conhecida por ninguém da executiva do partido, com o qual deveria ser discutida.

Ou seja, as discordâncias a partir da qual toda a matéria é desenvolvida, é “dada como fato, como pressuposto da matéria”, sem que haja qualquer fonte afirmando sua existência. Como na reportagem anterior havia fontes citadas, agora o pressuposto desta segunda matéria (sempre desfavorável ao PT) passa como um fato, não como um pressuposto imposto pelo jornal!!!

Posta uma matéria depois na outra, o efeito de sentido é precisamente esse: como há divergências quando à nacionalização da campanha eleitoral nos municípios – e isto é afirmado com base nas entrevistas feitas – a discordância quanto à carta e aos dois cenários passa como também afirmada pelas lideranças petistas!

É assim que se pagina a política, é assim que os jornalões destilam seus venenos. Para fugir deste jogo discursivo é preciso cotejar os textos, ler as entrelinhas, ser crítico e deixar a ingenuidade bastante longe de si.

Mas este leitor atento não está nos planos da elite brasileira, que agora quer uma “escola sem partido”.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.