Para além de consumidores de currículos

A vida cotidiana se inscreve em um espaço que se modifica e intervêm nas ações humanas, e determinadas condições estruturais (físicas e humanas) podem ser responsáveis por possibilitar ou dificultar intercâmbios entre pessoas e saberes. Se por um lado há uma estrutura na qual se entrecruzam intencionalidades para receber seus ocupantes, por outro, há um espaço a ser habitado e modificado pelos seus atores. E o que define a singularidade da ação educativa e das práticas escolares são elementos como sua inscrição no tempo e no espaço, sua concretude pela linguagem e a produção de sentidos às ações. Isso sim implica em troca dialógica entre instituição escolar e história dos sujeitos.

Mesmo estando em um universo permeado por relações de poder e por uma política educacional minuciosamente definida, o sujeito não se reduz a essa rede e joga com os mecanismos da disciplina: conformando-se a ela, e também a alterando. Se há uma produção racionalizada, instituída e centralizadora – tal qual a arquitetura curricular – que emana de algum lugar, há igualmente outra produção qualificada de consumo, que é astuciosa e dispersa, que se faz notar pela apropriação dos produtos impostos por uma ordem. Por essa razão, é possível conceber um sujeito que, por meio de sua inserção na ordem curricular, possa fazer com os componentes curriculares a sua forma de atuar no mundo. Isso sim é desafiar-se ser um professor.

Michel de Certeau, por conceber o cotidiano das práticas como patchworks, estabelece uma distinção entre lugar e espaço que me parece muito operatória:

“Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. (…) Os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar próprio e distinto que define. Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade.

Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais.” (CERTEAU, 1994, p. 201 -202)

Na perspectiva da racionalidade técnica, o melhor modo possível de se organizar pessoas e coisas é atribuir-lhes um lugar, um papel e produtos a consumir. Entretanto, os sujeitos nem sempre aderem a tal esquadrinhamento e escapam, mesmo que silenciosamente. Enquanto se supõe que as coisas e as pessoas foram postas em seus lugares, uma sequência de movimentos astutos e sutis vai alterando os objetos e os códigos, e estabelecendo uma (re)apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um.

A construção da ação docente e da legítima reforma educacional está naquilo que é dado cada dia, naquilo que pressiona os sujeitos e que os prende intimamente, quase invisível. No grande quadro de normativas e diretrizes, há uma trajetória cotidiana sendo construída pelo professor – que o leva a não apenas consumir as propostas curriculares que lhe são propostas/impostas, mas também a produzir saberes por meio de operações e táticas capazes de delinear o espaço próprio de sua atuação – pela qual é responsável.

Dessa forma, compreender o espaço e o lugar é compreender o dever que se assume em relação ao agir. “Aquele que pratica ato de compreensão (também no caso do pesquisador) passa a ser participante do diálogo (…) e sua observação é parte integrante do objeto observado.” (Bakhtin, 1997). É por isso que o sujeito não pode ignorar o fato de que na decisão que toma, ele assume responsabilidades frente a um horizonte de possibilidades. É assim que o professor participa eticamente do campo educacional: compreendendo o dever que se assume, ao mesmo tempo, diante dele e estando nele.

 

Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

 

 

 

 

Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.