Palavras proibidas

Excepcionalmente nunca é assim tão fora do comum.
Muitas pessoas caminham para direções opostas, mas dentre as outras – as que caminham na mesma direção, existem vários caminhos. Eram dias de chuvas que espremiam as pessoas nas calçadas, ela caminhava.
Atravessou duas até chegar naquele ponto. Um pequeno cruzamento cuja a faixa de pedestre já estava muito gasta. Pouco se via das marcas no chão. Não tinha semáforos, pensou em seguir até um ponto em que existisse qualquer garantia ou segurança para atravessar.
Não havia garantias na vida.
Lembrou de algo que leu em algum lugar, dizia que viver era perigoso. Morrer também. Existir ou não existir, era diferente de viver. Quando enfim atravessou a rua, sentiu uma leve vertigem. O sol já fazia alto e quente. O calor danava os pensamentos. Uma confusão no tempo e espaço.
Na maioria do tempo as pessoas não poderiam pensar sobre isso. Pensar e falar. Algumas palavras tinham se tornado proibidas. Todo mundo sabia quais eram essas palavras. Até que esse não era o problema, afinal a palavra não é o acontecimento. Se decido falar liberdade não me torno livre por isso. Sentiu outro arrepio, estava acontecendo de novo. Sabia desde jovem que não podia pensar sobre essas coisas.
Talvez uma mulher não devesse pensar sobre tais questões, e outras tantas, ainda mais neste tempo, quanto mais sendo ela quem era: pobre e negra. Pronto. Era de novo a visitação de resignar-se. Tinha desenvolvido uma técnica para esses eventos. Beliscava-se por debaixo da unha do dedo polegar, como se quisesse separar a unha da pele do dedo. Somava a esse dor fina uma cantiga mental de roda: Escravos de Jó\ Jogavam caxangá\Tira, bota, deixa ficar\ Guerreiros com guerreiros fazem zigue-zigue-zá\ Guerreiros com guerreiros fazem zigue-zigue-zá. Em algumas temporadas percebia que ficava pior, repetia sempre, mais de uma vez no dia. Uma espécie de mantra. Funcionava bem, organizava as dores e pensamentos e podia caminhar normalmente.
Já na porta do edifício em que trabalhava recebeu um papel comercial das mãos magrinhas de uma menina negra. Tinha cara de fome. Todos os papéis inúteis poderiam garantir o almoço para a pequena trabalhadora. Aquela hora deveria estar na escola, mas o futuro, já há muito estava lhe sendo negado. Todos que seguiam ou que entravam no prédio para trabalhar sabiam bem que para a menina todos os caminhos dariam no mesmo lugar nenhum.
Perguntou para a menina como era seu nome.  Não teve resposta. Se sentiu idiota, que importa o nome da fome e da miséria. Insistiu na pergunta, como se não pudesse deixar de ser idiota. Ester. Lembrou da menina que começara a estagiar no dia anterior. Falou dos sonhos e de como já tinha as etapas planejadas até o dia em que terminaria a faculdade, que com 24 anos certamente já teria vários títulos, comparou-se com superioridade as meninas que com sua idade já colecionavam filhos e reprovações.
– É um nome bíblico, não é ? Uma rainha ?
– Sei não, Dona. É ?
– Você quer que eu leve esses papéis todos, e distribua-os para você lá dentro?
– Não senhora, eu faço tudo certinho Dona.
– Qual sua idade, Ester?
– Doze – respondeu e virou-se indo embora.
Até que ponto ela também não era Ester, fazendo tudo certo, cumprindo as regras, trabalhando para comer, aceitando ser invisível. Pensou de novo nas palavras proibidas. A menina tinha sumido.
Amassou o papel e ia colocá-lo no lixo antes de entrar no elevador. Não tinha visto mais os compradores de ouro vestidos com placas. Acabou o ouro. O quinto era muito maior. Sua mãe ganhou um anel certa vez, de uma mulher com quem trabalhou a vida inteira. Precisou vendê-lo, resultando em dois dias de tristezas profunda, no primeiro foi a despedida forçosa de algo que tinha um valor do gesto. No dia que se seguiu, aconteceria a venda, então a surpresa do engano contumaz. O ourives que avaliou disse que não compraria porque era ouro de tolo. Não era ouro. Procuraram outro e ainda outro os dois deram a mesma avaliação. Não valia nada.
Em casa, a mãe chegara com a notícia do ocorrido. Contou com voz embargada, entre choro de tristeza dobrada e risos envergonhados, da descoberta da farsa. Boquiabertos todos gargalhavam da situação, como puderam acreditar ainda daquela vez na bondade dos ricos. A matriarca tinha chorado o dia anterior apegando-se ao valor e estima que o anel ofertado pela patroa simbolizava: gratidão pelos serviços prestados. Uma vida inteira de exploração e ao final um anel para adornar as mãos calejadas da lida diuturna. Antes daquilo pensava que a mãe tinha roubado o anel quando foi dispensada do serviço: a mãe tinha contado que a patroa dispensara e dera o anel em sinal de amizade para sempre, mas ela não acreditava. Preferia mesmo a versão que criara de que a mãe tinha pegado uma das muitas jóias da senhora. E era aquilo então.
Não valia nada. Cretinice. Nunca vale o que nos dão.
As palavras não poderiam ser ditas tão cedo.
 

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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