Era manhã aberta, respirava-se liberdade, mas tinha cheiro de morte por todo lugar. Não estava enganado. Depois que leu a carta de Olívia, soube que as dores e angústias que lhe visitaram nos últimos dias eram prenúncio do pior, nunca mais se encontraria com Fecho.
Lembrou-se de um dia em especial, foi um dia triste, como este. O amigo tinha chegado para vê-lo, tinha as feições assustadas, e antes de tudo pediu duas doses de água-ardente: – bem servidas! Sabia que o amigo sempre tinha uma reservinha para os momentos mais difíceis. Tomou tudo sem falar nada, cusparou um mascado que trazia na boca, e só então começou a a falar das mortes que tinha visto nas ruas naquele dia.
Falava baixo, mas não era medo de que pudessem ouvir-lhe, era outra coisa, pediu ao amigo que tomasse nota de tudo, era preciso o registro das coisas.
Embora sua narrativa pintasse tudo de noite na cabeça do amigo, o narrador acentuava a precisão da claridade, e repetia entremeando os relatos:
– Era sol quente… Tudo muito claro e visto pelas gentes, assistiam sem horror nenhum.
Primeiro falou das pilhas de corpos. Assim que o álcool fez algum efeito sobre a perplexidade do que fora visto e era relatado, fora dando contornos aos horrores: crianças incendiadas em celas, prédios que desabavam sobre famílias, pais de famílias, crianças, mulheres. Pobres sem eira nem beira, no caos.
Depois que despejou as coisas que tinha visto nos últimos dias, propôs fazerem cálculos. Nenhum dos dois amigos conseguia trabalhar com números frios, tratavam de vidas afinal, e cada uma multiplicaria dores tantas.
Pediu que não repartisse aquelas dores com muitas pessoas, sobretudo com as crianças, sabia-lhes capazes de ver as ruínas, mas não queria que elas imaginassem que eles não lutaram pelos dias melhores.
Estava exausto, ver e desver consumia-lhe.
Antes de o amigo ir embora, quis servir-lhe outra dose, mas se apercebeu que o amigo estava faminto, tanto que devorou um pão que estava sobre a mesa, sem sequer pedir e só depois do fim, se desculpou envergonhado: – não comia tinha dois dias. Disse que comesse ainda outro pedaço que restara, e lembrou-lhe a frase dos anos passados, quantas vezes repetida em espécie de contrato: onde come um, comes dois, se tiver uma maçã, ela deverá ser divida para dois, ou quantas bocas tiverem fome.
Ainda uma vez o amigo riu miúdo. Sim, ele sabia.
Nunca tinha visto Fecho com semblante tão endurecido, ele se despediu e prometeu-lhe que voltaria assim que fizesse tempo. E voltou mesmo, vários dias.
Aquele foi outro dia.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
Amei o texto minha querida amiga! Como sempre seus textos me encantam. Você aborda os problemas sociais de uma forma incrível!!! Parabéns