Os ventos do Pacífico

Não são pacíficos os ventos que vêm do outro lado da América Latina, que vem do Pacífico. O governo do Equador experimenta implantar as políticas neoliberais desde que assumiu, traindo Rafael Garcia. A população se revoltou, foi para as ruas. E as prisões se encheram e a perseguição continuará.

Laboratório do neoliberalismo, desde a ditadura de Pinochet, o Chile amarga uma desigualdade social que desconhecia. Vê seus idosos sem renda. Vê seus jovens sem futuro. Enquanto que a concentração de renda continua firme e forte, e parece ser tão vergonhosa que a primeira dama acabou pedindo às amigas que é preciso abrir mãos de “alguns privilégios” para poder manter a mesmíssima exploração.

E também no Chile o povo foi para as ruas. O presidente Piñera voltou atrás no aumento dos bilhetes de metrô, imaginando que retirado o estopim, o resto voltaria a ficar submerso. Acontece que estopim é apenas estopim: traz a revolta latente para a superfície.

Na Bolívia, a oposição perde as eleições mas não aceita os resultados – aqui no Brasil já vimos este filme com Aécio Neves e deu no neofascista que nos governa. Ora, parece que o sistema global neoliberal não aceita mais qualquer tergiversação: quer a Bolívia a todo custo.

Sei. O povo nas ruas: eis a novidade que saudamos. Estes seriam realmente os ventos que viriam do Pacífico: ensinar a tomar as ruas?

A maioria dos comentaristas diz que não há clima global para a existência de ditaduras na América Latina. Que as ditaduras estão afastadas. E que o povo equatoriano e o povo chileno podem ser nosso estopim na revolta contra as políticas neoliberais… Os argentinos mostram nas urnas e expulsam do poder o presidente neoliberal. E daí?

O vento que vem do Pacífico também pode ser outro: o do endurecimento do regime. Ditadura militar? E precisa ser militar para ser ditadura? Um governo civil que põe polícia e militares a atirarem contra o povo. Um governo civil que prende. Um judiciário que dá a bênção a tudo para garantir privilégios e a manutenção geral da ordem do capitalismo financeiro e improdutivo, que eleva a índices nunca vistos as desigualdades sociais, que retira direitos sociais, que reduz verbas para tudo o que possa ter ‘cheiro’ de social, é afinal de contas o quê? Só porque é civil não é ditatorial?

Penso que os ventos que vêm do Pacífico são de endurecimento, de mortes e de prisões. E por aqui nosso fascista de plantão declarou:

Nos preparamos. Conversei com o ministro de Defesa sobre a possibilidade de ter movimentos como tivemos no passado, parecidos com o que está acontecendo no Chile, e logicamente essa conversa ele leva a seus comandantes, e a gente se prepara para usar o artigo 142 [da Constituição], que é pela manutenção da lei e da ordem, caso eles venham a ser convocados por um dos três poderes”, disse Bolsonaro nesta quarta-feira pela manhã (hora local) em Tóquio ao conversar com alguns jornalistas depois do café da manhã. (disponível em https://www.brasil247.com/brasil/bolsonaro-teme-efeito-chile-e-manda-forcas-armadas-se-prepararem-para-possiveis-confrontos )

Art. 142 da Constituição:

As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Será que ao pensarmos a impossibilidade de uma ditadura por aqui estamos imaginando que estamos fora dela? Que o formalismo de fachada da existência de três poderes funcionando é garantia de que não estamos já numa ditadura e que tudo pende para o recrudescimento da repressão?

Vivi na ditadura militar (agora chamada pelo presidente de um dos poderes de “movimento de 1964”). E penso que estou vivendo na ditadura em sua nova face, a ditadura neoliberal de imposição da miséria em benefício de uma minoria cada vez mais minoria! As fórmulas políticas mudam… mas a essência do sistema de desigualdade é sempre a mesma, em qualquer das facetas do capitalismo. E os ventos não são de mudança!

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.