Era uma vez no país das maravilhas um vice presidente que tomou o poder da nação pelo golpe baixo do “impeachment”, beatificando este ato obsceno de “democracia constitucional”. O nome de batismo deste pseudopresidente é Michel e o sobrenome, Temer. Ele é acusado, este presidente, de múltiplos e poderosos crimes contra a Nação. Continua livre e soberano.
Dias atrás, em cena na televisão, com voz e gestos de plena amabilidade, o presidente autocompetente, proclamou e advertiu que, neste momento, o Brasil precisa de plena harmonia dos Três Poderes da Nação. Advertiu a todos os incrédulos que a harmonia dos Três Poderes é constitucional, portanto, é lei e precisa ser cumprida com rigor para garantir a ordem e o progresso que tanto precisamos. No final daquele dia, também na televisão, falou um ministro do governo temeroso e confirmou tal e qual o dito pelo seu presidente, a quem está servindo. Uma descoberta inédita e incrível nos horizontes da opinião pública: um amor conjugal a três, determinado pela Constituição.
Fiquei comovido perante estas cenas. Tive a sensação súbita de náuseas e vontade de vomitar. E fiquei também intrigado e curioso, já que não sou um conhecedor profundo e nem leitor assíduo da nossa amada Constituição. Conheço, apenas, o estritamente necessário para cumprir as obrigações e usufruir dos direitos garantidos na Constituição. Embeveci-me de coragem e fui ler o texto constitucional. Fiquei encantado de súbito quando li o que está escrito no Parágrafo Único, do Art.1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Não tinha nem abafado o suspiro e senti um calafrio em dobro quando li o Art.2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Eis que o presidente Temer tem razão. Só que no mesmo instante vi uma luz resplandecente iluminar uma inscrição bem grande no firmamento: “Dilma tem que voltar à presidência do Brasil”. Claro, pensei, ela foi deposta por ato de “desarmonia” dos Três Poderes, por ter praticado pedaladas pelos caminhos do Planalto Central nas manhãs de sábados, domingos e feriados. Portanto, se a harmonia dos Três Poderes é lei constitucional, Dilma foi deposta de forma inconstitucional. Ou, é o caso em que prevalece a força soberana do poder quando a lei vale apenas para uns e em certas situações ela não se aplica? Vejamos de novo: “Todo o poder emana do povo, que [o povo] o [poder] exerce por meio de representantes eleitos…”, como isso é possível se mais de 95% do povo brasileiro não queremos o Temer como presidente, mas que seja condenado e vá para a cadeia? Como ele pode governar a Nação – que amamos tanto! – em nome de menos de 5% dos brasileiros? Claro, com a força da lei da harmonia e com a força do amor casamenteiro dos Poderes.
Ao continuar a leitura do texto constitucional me deparei com outra maravilha no Art.5º: “Todos são iguais perante a lei…”. Pensei: está aí a questão. A igualdade humana é constitucional, está na letra da lei! Mas, de repente, o sentimento maravilhoso se esvaiu e me perguntei pela bilionésima vez: porque uns são mais iguais que os outros se a Constituição determina que todos somos iguais? Ah, mas é somente iguais perante a lei, dizem os inteligentes, não nas condições sociais de vida real. Aí vem mais uma pergunta – essa velha e “diabólica” maneira de fazer perguntas ao estilo de A Conversão do Diabo – porque os senadores, os deputados, os governadores (quem mais?) podem roubar, corromper e ser corrompidos, praticar crimes sem fim e de todos os tamanhos e não podem ser condenados, nem presos e nem perder seus mandatos e cargos políticos? Mas é claro, eles, os senadores, os deputados, os governadores se deram “foro privilegiado”, “imunidade parlamentar”. Certa vez na história dos homens era proclamado: “todo poder vem de Deus e em nome Dele deve ser exercido”. Aí está a fonte da inspiração.
A harmonia social é do pensamento e método idealista-positivista e requer a ordem total para o progresso da humanidade, mesmo nas desigualdades sociais, que devem obedecer a rigor as leis naturais. Enquanto que, em seu oposto, o conflito social é do pensamento e método dialético materialista histórico, que busca a igualdade social no conflito das contradições e na desarmonia das desigualdades. Na ideologia positivista é a desordem, altamente nociva à sociedade capitalista.
Pelas leis positivistas, os Três Poderes precisam estar em harmonia constitucional: as medidas e os planos pensados e tramados, mesmo quando contra os trabalhadores e os contribuintes, no Gabinete da Presidência – Poder Executivo – precisam ser apreciados, votados e aprovados nos nobres salões dos plenários da Câmara e do Senado – Poder Legislativo – que precisa, em sua instância final, da aprovação no Tribunal Supremo – Poder Judiciário.
Assim, esta lei da harmonia dos Poderes é válida e se aplica somente quando o governo é das elites do capital, mas quando o governo é dos trabalhadores, vale a lei do conflito, do confronto e desarmonia dos Poderes para destituir o(a) Presidente da Nação.
Professor, pesquisador, escritor
José Kuiava é Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp (2012). Atualmente é professor efetivo- professor sênior da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Planejamento e Avaliação Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: autobiografias.inventário da produção acadêmica., corporeidade. ética e estética, seriedade, linguagem, literatura e ciências e riso.
Comentários