Os reis, de Julio Cortázar

Este é o primeiro livro que Cortázar assina com o próprio nome [a publicação anterior – Presencia – uma coletânea de poesias assinou com o pseudônimo de Julio Denis]. E nele o autor retoma de forma extremamente criativa o mito do Minotauro, filho de Pasífae, esposa de Minos, que como disse ironicamente Millor Fernandes, “mandou ver com o Touro”. Como todos sabem, Minos encerrou o Minotauro no labirinto do plácio de Cnossos, em Creta.

Como salienta Ari Roitman em seu excelente prefácio a esta edição, o autor “recria o mito do Minotauro, desenvolvendo porém variações que produzem surpreendentes efeitos de sentido”. Para começar, o herói deixa de ser Teseu: o monstro, por ser o diferente, encarnaria precisamente o outro lado dos reis e filhos de reis: Minos, Teseu, Egeu, Ariadne. Ele é o duplo. O que se esconde “negro coração” por trás das paredes do peito, Minotauro expõe à luz do dia. Por isso ele é apresentado como o complemento de quem o encerrou e de quem o matará. E como tal será o mestre do jogo das palavras.

O texto é composto pelas seguintes cenas:

Cena 1 – longo diálogo entre Minos e Ariadne. Ambos estão em frente ao labirinto, e conversam sobre a necessidade que teve o rei de encerrar a monstruosidade, enquanto esperam a chegada de mais um grupo de donzelas e rapazes atenienses para o sacrifício a Minotauro. Deste diálogo, extraio a seguinte passagem, que revela o outro que habita cada personagem [e cada um de nós]:

Minos: – Uma mulher não sabe olhar. Só vê seus sonhos.

Ariadne: – Rei, assim olham os deuses e os heróis. Tu mesmo, o que vês do dia senão a noite, o medo, o Minotauro que teceste com as teias da insônia? Quem o tornou feroz? Teus sonhos. Quem lhe trouxe o primeiro grupo de rapazes e donzelas, arrancados de Atenas pelo terror e o prestígio? Ele é tua obra furtiva, como a sombra da árvore é um resto de seu terror noturno.  

Cena 2 – Chegados os condenados, Teseu se aproxima de Minos e acontece o diálogo entre eles. Quando Minos lhe pergunta “quem és?”, responde-lhe Teseu “um igual”. Minos sabe que Teseu vem para matar. A conversa girará em torno do destino, do encarceramento, da prisão que nem a morte livrará o herói. E também do jogo das palavras, tanto que em certo momento Teseu diz: “De súbito descubro em mim uma perigosa facilidade para encontrar palavras. O pior é que gosto de tecê-las, ver no que vai dar, lançar as redes”.  Numa passagem de intervenção de Minos, eis um achado: “É estranho Cada um constrói seu próprio percurso, é o seu percurso. Por que, então, os obstáculos? Trazemos o Minotauro no coração, no recinto negro da vontade?”.

Cena 3 – Trata-se aqui de um monólogo de Ariadne, prometida por Minos a Teseu na cena anterior [“Mata-o e guarda essa morte como uma pedra na mão. Então te darei Ariadne”],que se encontra do lado de fora do labirinto segurando o novelo de linha que permitirá o retorno de Teseu. Ao mesmo tempo em que pensa em Teseu, também deseja o encontro com o Minotauro: Nu e rubro, vestido de sangue, emerge e vem a mim, ó filho de Pasífae, vem à filha da rainha, sedenta de teus lábios rumorosos!” Eis outra duplicidade explorada por Cortázar. Ariadne explicita a compreensão do mito que nos propõe o autor:

Os olhos de Teseu me fitaram com ternura. “Coisa de mulher, teu novelo; jamais encontraria o retorno sem a tua astúcia.” Porque todo ele é caminho de ida. Nada sabe de espera noturna, do combate salobríssimo entre o amor à liberdade, ó habitante destes muros!, e o horror ao diferente, ao que não é imediato e possível e sancionado”.

Cena 4 – Aqui temos o diálogo, no interior do labirinto, entre Teseu e o Minotauro. Ao contrário da versão tradicional, é o Minotauro que se oferece em sacrifício. E Teseu sabe que carregará esta morte e que o mito permanecerá. Duas passagens:

Teseu – “ … Fala-se tanto de ti que és como uma vasta nuvem de palavras, um jogo de espelhos, uma reiteração de fábula inapreensível. Tal é ao menos a linguagem dos meus retóricos.

Minotauro – É como se olhasses através de mim. Não me vês com teus olhos. Nem sequer tua espada me está justamente destinada. Deverias golpear com uma fórmula, uma oração: com outra fábula.”

Na passagem seguinte, Minotauro reflete sobre sua possiblidade de sair do labirinto seguindo a linha de Ariadne:

“… Sair para outro cárcere, já definitivo, já horrivelmente povoado com seu rosto e seu peplo. Aqui eu era a espécie e o indivíduo, cessava minha monstruosa discrepância. Só volto à dupla condição animal quando me olhas.A sós sou um ser de traçado harmonioso; se decidisse recusar-te a minha morte, travaríamos uma batalha estranha, tu contra o monstro, eu te olhando combater uma imagem que não reconheço como minha.”

Cena 5 – Aqui é o momento da morte do Minotauro, e o diálogo se dará entre o citarista que se aproxima para tocar, agradecendo ao monstro por ter ensinado a todos os que supostamente teriam sido sacrificados: em verdade estão todos vivos, livres e dançam agora como dançaram antes dentro do labirinto. O tema aqui será o do esquecimento, a vida como um percurso de esquecimentos.

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O grande jogo, neste genial exercício de recriação de Cortázar envolve a passagem contínua entre dois níveis: o da narrativa e o da metanarrativa, em que se discutem os acontecimentos. Neste sentido, se o Minotauro instaura a diferença e se os “reis” não conseguem conviver com a diferença e a encarceram num labirinto, persiste lá, recôndito, o que se quer negar. Ora o que não é “imediato e possível e sancionado”, ora o escuro de nós mesmos que habita as paredes do peito e se esconde no negro coração. Temos, pois, um jogo tríplice: do eu comigo mesmo; do eu e o outro diferente de mim; e da narrativa e metanarrativa. E como a tudo se dá pela chave da linguagem, ensina o Minotauro que somente se mata uma fábula com outra fábula; uma narrativa com outra narrativa.

Politicamente, isto é, na polis, trata-se de elaborar esta outra narrativa…

Referência. Julio Cortázar. Os reis. Rio de Janeiro : Civ. Brasileira, 2001.    

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.