Uma cacetada! Sinto-me como se tivesse levado uma surra de cotidiano na leitura deste conjunto de textos de Políbio Alves onde nas histórias e reflexões se misturam memórias irreprimíveis de um poeta e escritor que conheceu a tortura porque participou da história e esteve presente ao assassinato de Edson Luís no Calabouço, onde dava suas aulas. Foi dos que não permitiu que a repressão escondesse o corpo e participou da caminhada que o levou à Assembleia Legislativa e depois à Candelária.
Este excelente livro, merecedor do prêmio que o distinguiu (Prêmio Literário Augusto dos Anjos), compõem-se das miudezas do cotidiano aliadas às reflexões sobre o próprio ofício da escrita e dos desvãos das palavras. Sua técnica provém das artes plásticas: colagem de fragmentos. Fragmentos do cotidiano.
Percorrem as páginas esta obsessão criativa, produto da observação da “solidão coletiva. Impenetrável”. E no entanto esta solidão jorra nos flashes das histórias que aqui se contam. Sua escritura é própria, original, misturada, gêneros intercambiáveis com a constante da referência ao social, ao mundo dos homens e das mulheres das margens, nas quais vive também o escritor, o narrador que se assume em primeira pessoa e que reflete sobre o gesto da escrita que o move e o comove, pois “o ato da escritura viabiliza a saga das palavras”.
Os fragmentos na colagem acabam por produzir uma imagem do todo em que vivemos como partes sem jamais conseguirmos a totalidade perdida da arte do passado. Justapostos em “colagem”.
Em As moças do sobrado, fala-se das mulheres que “toleram a difícil vida fácil de cada dia”, cuja existência depende do aparecimento do desconhecido que chega movido pelo furor do desejo para encontrar a “Despudorada. Com um beijo na boca. De alguém desconhecido. Aí está. Mas afetuosíssimo, às vezes, sim. Outras não”. Eis como descreve o sobrado:
O patamar, no momento, habituado à penumbra, se alternava pelos discretos néons, pisca-piscas. É hálito memorial de prazer. O que é o caso. Isso. Por toda a parte. Pressentido nos corpos se grudando de libertinagens nos banheiros. É assim que se perpetua essa noite sedutora a rebuscar em cada um dos distintos cômodos a epifania de Dante.
O solilóquio de Meteorango Dia, escrito no correr das horas anunciadas como fôlegos de uma reflexão em que se juntam memória para “perfazer a codificação dos alicerces sem cal e das paredes empedernidas de lodo”, cotidiano presente, os excessos de non sense da vida que se leva e referências constantes à arte, aos artistas, aos outros que também se debruçaram sobre o papel em branco, vendo nele as notas de rodapé para encontrar hematomas submersos na pele das paredes. Por tudo aqui passa a alegoria. Porque estão, às sete horas e trinta minutos, Os homens. E a cidade. Aquela, petrificada no sincronismo, metodismo, abstracionismo das réstias disformes do cotidiano. Ou coisa parecida. Irreparável. […] É o fato mesmo das peripécias das palavras descontínuas que vão anestesiando o amanhecer”.
Este longo texto que vai das cinco horas e três segundos ao entardecer das dezessete horas e cinquenta minutos, em que o leitor se encontra com a intimidade do escritor que confessa: “Este texto escrevi. Com fôlego. Não é outra coisa. É real, dizem. Em suma, pensado. Incomoda. Eu sei. Desordena qualquer conjectura. Embora tenha reinventado tudo. Estritamente infestado do cotidiano. Vertiginoso. Deve ser isso. Numa só reencarnação escolástica de estrosa ousadia. Só para espantar as pessoas. E na descontinuidade das palavras, anestesiando o amanhecer, no descontentamento nas palavras avulsas em seu ruído sobre determinadas amarras estruturais da frase e de certo servilismo formal dos colonizadores da literatura, afirma-se que entre o desespero e o medo não nenhuma resistência! Sempre a reflexão sobre o escrever, sobre dar vida ao imerso, fazer aparecerem à luz dos refletores, … as ancas sinuosas do cotidiano na asneira geral da imaginação.
Este é o texto mais longo desta coletânea e é imperdível. Mas impossível de resumir. Para quem se comoveu na leitura, fica apenas a possibilidade de agir como Borges: transcrever palavra a palavra… não há outra saída. Por isso, melhor sair deste texto para encontrar os próximos.
Em As miudezas do cotidiano, um texto curtíssimo, na sequência do livro como a dar um alívio ao leitor, porque aqui palavra e ordem dos textos não são acasos, aparece o primo Luciano e as iniciações sexuais:
PRIMO LUCIANO me abisma. Desta vez sob o efeito de um gesto. Ainda que, tempestuoso. A propósito, motivo de cumplicidade. Trata-se de um entendimento. De natureza múltipla, é isso, entre nós. Sim, à deriva desta manhã. Atemporal. Tanto assim, pediu segredo. Absoluto. Senão, denguices, nunca mais. Por isso essas coisas conosco aconteceram. Como um despojado sentimento entre mim e ele a partir desse fato. Indizível.
Que nos é comum. Essas coisas – essas miudezas cotidianas – certamente pertencem a nós dois. Em consequência disso, a partir de agora desfrutamos de insaciável hábito, pois. Para desdouro dos meninos. Das mulheres. E em seguida, do espanto dos homens.
Arestas tropicais contém três episódios alegóricos de um tempo que não se deve esquecer, o da ditadura militar. Os dois primeiros de indivíduos: Wallace foi metralhado diante das janelas escancaradas e das portas entreabertas da cidade baixa. Morreu feito cão sem dono, espragatado às margens do rio. Fora ladrão. Doca, a personagem do segundo episódio, era “o rei do pedaço”, pessoa respeitada na comunidade. Foi denunciado por um tal Jonas. Foi quando Cruz das Armas presenciou o maior desatino:
Isto porque, o quartel do 15 RI amanheceu com seu paiol ameaçando explodir Cruz das Armas e adjacências. Os adultos, depois, me contaram coisas: dos rostos assustados se escondendo por trás das portas e janelas. As pessoas fugindo em disparada pelas ruas com cheiro de cadáveres, no percurso de Macaíba até o Jardim Samaritano.
O terceiro episódio vem nomeado como Utilidade pública. Uma cidade que se chama Pananeia… onde impera a miséria: 98% da população se alimentava de detritos. Em certo momento, os habitantes sentiram dores pelo corpo e foram se deixando morrer… Mas Pananeia criou adornos brilhantes, De preferência, aquele adereço artesanal de córneas desconexas, ainda vivas. Transformando-as em objeto de moda para enfeita o pescoço do mundo. Pananeia se torna lugar em que se dilaceram cadáveres e para não haver evasão de rendas, começou a cobrar fabulosos ingressos destinados à exposição dos corpos. Engordar a conta-corrente. Estourar miolos e vidas para aumentar disponibilidades financeiras. [Este episódio parece tratar do presente, Considerando o que está acontecendo no Brasil, nesta semana longa que se iniciou com o locaute e greve de caminhoneiros independentes do transporte em 21.05.18 e segue ainda hoje, 28.05.18 em função da política de engordar as contas-correntes dos rentistas estrangeiros da Petrobrás]. Mata-se por Pananeia inteira pela miséria para que esta se torne instrumento de riqueza dos exploradores de cadáveres!
Em Interstício o leitor poderia esperar um espaço de fôlego. Não há. Aqui o diálogo é entre o narrador/escritor e Augusto dos Anjos (um predecessor? Afinal, Augusto dos Anjos a seu tempo não se deixou classificar em qualquer das correntes literárias em voga como Políbio Alves hoje não se deixa classificar sequer segundo os gêneros discursivos conhecidos). Ao mesmo tempo em que se conta a história de Valmir, jovem adolescente que sonha correr mundo como Mara. Aqui se faz avaliação do ofício de escrever, do expor-se às agruras do leitor:
… é preciso restaurar a maldição nirvânica do poder letal da expressão. Escavo feridas, corto os pulsos, deixo o sangue escorrer sobre a brancura do papel. De cada metáfora, em torno do espaço da linguagem, o pânico das intenções veladas, onde configuro alegórica viagem.
Agora, nômades intimidades tem como ambiente um velório, a que chega um desconhecido vestido de terno branco e pés descalços. Carregava uma garrafa de cachaça e vinha com um charuto aceso. Depois de um tempo sentado no chão, levanta-se e “o mijo se empasta. Rápido. Desencorpa bolhas, espalhando-se sobr flores murchas dentro do caixão”. Enquanto isso, Biuzinho, sacristão, admira os azulejos que adornam a igreja: O prazer de alardear a dualidade da vida.
Em Fábulas obscenas, o narrador nos traz quatro supostas fábulas sem “lições de moral” e sem bichos falantes… Homens. Cada uma delas enlaça diferentes histórias curtas, todas entrecortadas por extratos retirados de aqui e acolá: propagandas; reclames da Rádio Difusora; dizeres de cartazes; informações curtas como “as inscrições do vestibular começam terça-feira”; ou ainda slogans de programas oficiais como Dê o seio ao seu filho, da campanha de incentivo ao leite-materno ou É fácil, faça sua horta em casa; declarações de políticos e extratos de editoriais. Aqui, o autor leva sua técnica de fragmentos e colagens ao paroxismo. Incomoda, agride, faz rir e chorar porque escancara nossa condição de homem moderno que deixou para o passado a unidade/totalidade que a fé religiosa fazia crer fosse real.
Todas as “colagens” aparecem nos entremeios das histórias contadas [também elas fragmentos colados], como a do Alemão, preso para prestar informações sobre o assalto de joias num shopping center, torturado com palmatória de 2 quilos, que precisou ser carregado para o Pronto Socorro seguido das declarações curtas do Superintendente de que em suas delegacias não permitia violência, que no entanto foi, é e continua sendo prática corriqueira. Aqui circulam personagens como Zefa Cafu, prostituta e catadora de tudo nas ruas; Selma, doméstica, mãe que luta para conseguir dinheiro para melhorar a vida do marido preso; Ivone, que é chamada de cúmplice de ações do amante que desconhece, mas “puta com dignidade”; Hermannez, músico que se torna assaltante para sobreviver; Madame Valquíria que atende consultas referentes a questões jurídicas, assuntos empresariais, vícios de embriaguez, amores desfeitos, conquistas amorosas; Creuza cuja família azeitava as mãos de “poderosos” para tirar seu marido da cadeia…
Este conjunto de histórias entrelaçadas a reflexões sobre a escrita e sobre o mundo, entremeadas pelas citações aparentemente forjadas (colagens), pela presença quase incompreensível dos reclames e dos slogans de campanhas oficiais, tudo dá uma amostra do cotidiano caótico, numa alegoria impagável! Coisa de gênio.
O texto que encerra esta coletânea de ficção e realidade, No meio do pântano, a memória é uma profunda reflexão sobre o escritor, sobre a escritura, em que o autor se mostra: sou aquele que, pessoalmente, se exorciza. Ou melhor, escreve. Ainda que, insatisfeito, reelabora cada dia, anos a fio, inevitável manuscrito. Ele faz parte de um nós, autores vivos, enlouquecidos de contemporaneidade e de releituras.
Este é um livro impressionante. Não dá para perder!
Referência: Políbio Alves. Os ratos amestrados fazem acrobacias ao amanhecer. João Pessoa : Mídia Gráfica e Editora, 2015.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Parece ser um livro que sugere novas maneiras de dizer/refletir/sofrer o complexo mundo cotidiano. É bom ver uma novidade (não nova, nem recente, mas sendo trazida ao sudeste maravilha), pra mostrar o quão seletivo é o mundo das letras e os cânones que elegem o que os outros devem ler. Parabéns, Wanderley, pelo entusiasmo! Parabens ao ‘gênio Polibio. Que vc possa ser lido por aqui. Merece mesmo!!!