O crítico de arte reúne neste volume obras de nove artistas plásticos contemporâneos, e faz isso depois de uma apresentação em que defende uma tese bastante interessante: a arte expressa um determinado conceito de realidade, não uma realidade em si porque há pluralidade de pontos de vista. E mais interessante ainda é a aproximação que faz, na sua introdução, das expressões dos artistas contemporâneos com aquelas que produziram os viajantes, no que se costumou chamar de “literatura de viagem”, em que se noticia a uma sedenta Europa o que vão encontrando no novo e desconhecido mundo.
São registros e muitos deles com desenhos e pinturas: O registro que temos de alguns séculos de Brasil deve-se, em grande parte, aos viajantes. A Missão Artística Francesa, de 1816, marcou definitivamente a arte brasileira, pois forneceu método e aprendizado artístico, sistema filosófico de entendimento e representação da realidade e objetivos concretos de carreira e atividade artística. Mas o que então se pretendia era retratar a realidade: classificar para conhecer, fixar para compreender. E neste sentido os tempos são outros. E o autor convoca como um anti-herói de nosso tempo São Tomé, do “ver para crer”.
Hoje não necessitamos ver para crer: não vemos, mas sabemos que existem: vírus, bactérias, átomos, moléculas atômicas, energias no campo da física, buracos negros. Hoje conhecemos muita coisa com base em cálculos matemáticos, e não pela visão. Para o autor, três descobertas marcam simbolicamente o “novo conceito de real”: da física (Teoria da Relatividade), da psicologia (Teoria do Inconsciente) e da arte (Cubismo). “Nos três casos trabalhamos com deduções, com a estrutura da realidade, com as manifestações e efeitos do existente. São Tomé não gostaria da nossa época”.
Tomando como “novos viajantes” o conjunto de nove artistas plásticos cujas obras “retratam” o Brasil, Jacob Klontowitz, nos fornece novas leituras dos trabalhos que apresenta. Ao apresentar cada artista, seleciono aqui fotos de suas obras que aparecem neste instrutivo livro de arte:
Siron Franco
A obra comentada é o Monumento às Nações Indígenas, trabalho exposto em Goiânia, em colunas de três ou quatro lados, cada um deles com independência e cada uma de suas paredes funcionando como forma artística. O trabalho foi concebido para as comemorações dos 500 anos da “descoberta” e o início do novo milênio, e realizado em longo período, desde 1993 quando já estavam prontas 493 colunas e a cada ano foi sendo acrescentada uma nova coluna, chegando em 2000 a 500, cujo conjunto é uma só escultura, mas que se abre para inúmeros murais que permitem “infinitas permutações”.
A obra comentada é o Monumento às Nações Indígenas, trabalho exposto em Goiânia, em colunas de três ou quatro lados, cada um deles com independência e cada uma de suas paredes funcionando como forma artística. O trabalho foi concebido para as comemorações dos 500 anos da “descoberta” e o início do novo milênio, e realizado em longo período, desde 1993 quando já estavam prontas 493 colunas e a cada ano foi sendo acrescentada uma nova coluna, chegando em 2000 a 500, cujo conjunto é uma só escultura, mas que se abre para inúmeros murais que permitem “infinitas permutações”.
Ana Maria Pacheco
A artista não reside no Brasil, mas “a memória é a melhor mestre do que a vivência direta, em certos casos”. O autor diz que fez um levantamento das máscaras na cultura primitiva e popular do Brasil (Máscaras Brasilerias, edição da Rhodia) e toma a elas como matriz aproveitada por Ana Maria Pacheco. A respeito da obra, diz: Num universo de seres de sonho, de uma multidão que marcha insone em direção ao destino. Sonho e insônia, o paradoxo desse trabalho. Seres envolvidos em trevas e brumas, inconscientes, lúcidos na tragédia que se adivinha. Talvez, afinal de contas, não estejamos diante de realidades opostas, sonho e vigília, destino e desejo, consciência e inconsciência, voluntariedade e prisão, lucidez e algemas. Sombra e luz. São determinantes do ser contemporâneo, cidadão que duvida de seu poder de exercer a cidadania, vítimas de arranjos internacionais e de dramas que não compreende e, finalmente, seres vítimas dos próprios desejos que, isto sim, não é determinado pela conjuntura internacional, preconceitos, civilização, mas o resultado do caminho da espécie. (grifos meus)
Francisco Brennand
Impossível ir a Recife e não visitar a velha fábrica de cerâmica, fundada pelo pai do artista em 1917, e hoje transformada em um grande atelier e grande espaço (são 20 mil metros) onde se encontram as obras de Brennand. (Mas quase nada está à venda!) É uma obra que não caminha por linhas retas, não se desenvolve historicamente em ralação a si mesma, não tem a preocupação da coerência ou do diálogo com o público. Neste andar sem rumo, nestas palavras soltas como quer o artista, nós terminamos por encontrar um texto de grande significação e destinado a compor a fisionomia de um mistério. Há coerência par ao observador. Certamente, quando não tratamos da estética ou da proposta política, nos resta a história da linguagem humana cuja principal qualidade é a vitalidade. … Nunca uma obra de arte será um t exto completo. O que importa é que estas frases esgarsas iluminem a nossa consciência, nos aterrorizem e nos consolem.
Franz Krajcberg
O soldado polonês, enojado do ser humano depois da segunda guerra, recolhe-se ao mundo da natureza. E é com seu material – galhos, raízes, troncos carbonizados – que traz “o mundo para o mundo dos homens”. Acontece que o artista, nauseado com a crueldade e a monstruosidade da guerra, vem à natureza e nela encontra uma metáfora cruel da guerra e dos mortos nas árvores carbonizadas. Se os materiais, em si, não falam, o artista tem esta capacidade de os colocar no mundo da linguagem, para leituras em aberto.
Antonio Hélio Cabral
Dentre os nove artistas, este é, para mim, o mais incompreensível. As fotos aqui presentes me espantam e me soltam: que significam? Olho-as extasiado, mas isso não me satisfaz… e então é que entra a função do crítico, que nos ajuda a ver com seu olho informado. Nós estamos habituados a pensar na pintura como uma mancha organizada de luz solar. Ou de alegria sensual renovadora da nossa esgotada sensibilidade urbana. A pintura de Antonio Hélio Cabral, contudo, é exatamente o contrário disso. Estas pinturas não parecem ter sido pintadas com plena luz. Alguma coisa se terá filtrado por cortinas espessas. Ou alguma coisa terá sido filtrada por uma visão indagador ada realidade. Melhor ainda, nada terá sido filtrado, pois nada terá vindo do exterior. A luz não é plena e nem solar, pois essas obras foram realizadas na mansarda, num local que é só de Cabral e que nada tem a ver com esses vários ateliers aos quais ele nos habituou em tantos anos. Certamente Cabral teve um único atelier em toda a sua vida, a luz jamais se filtrou pelas vidraças ou foi amortizada por cortinas espessas. Aqui a iluminação é de outra ordem, o que preside essa pintura é a mais violenta das emoções, o sentimento do homem no lugar do sentimento do mundo.
Israel Pedrosa
O artista usa o Tarô, as cartas do Tarô para contar a história brasileira. Não é uma história de desânimo, mas de otimismo, ao contrário do que “é inegável que, devido aos graves problemas sociais e morais, a população descrê, em boa parte, das suas capacidades , da sua história e das suas realizações”. Às figuras históricas são conferidas realidades psicológicas, míticas e simbólicas, aproveitando-se dos nomes das próprias cartas do Tarô. Sua escolha para a carta da Morte é Marta Rocha, símbolo da mulher bela. Há sentidos possíveis: a beleza é efêmera? Mas também, como aponta o crítico, “a mulher é a que gera vida. Beleza e morte, geratriz e desintegração, a mulher e o esqueleto”.
João Câmara
O crítico apresenta o artista como aquele que revolucionou a arte brasileira, concedendo-lhe um parâmetro “do qual não mais se afastará”. Trata-se da junção entre o realismo e o imaginário, recuperando “a imagem como narrativa da história e como história da narrativa”. Segundo o crítico A arte de nossa época, mais do qualquer outra, testemunha humanamente a realidade. Este dado, o do testemunho e o da reflexão pessoal, encontra nesse artista um de seus maiores cultores.
Roberto Magalhães
Artista do movimento pop conserva algo da brincadeira infantil. “A coerência de um artista como Roberto Magalhães está justamente na capacidade manifesta de ser o mesmo ser que procura, de maneira não agressiva, o tempo todo.” Para o crítico, “A coerência está na busca, não no achado.”
Carregador de banana. 1984. Óleo sobre tela
Quem sou? De onde vim? Para onde vou? 1992. Pastel e óleo sobre papel
Maria Bonomi
Trabalhando com xilogravura, esta é uma artista da floresta, com suas gravuras em grande formato, que para o crítico reintroduziram “validade inesperada ao abstracionismo gestual que parecia esgotado”.
Referência: Jacob Klintowitz. Os novos viajantes. São Paulo : SESC, 1993.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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