Este seria o romance de rompimento de André Gide com o simbolismo, cujas posições são trazidas para dentro do texto, no jogo entre narrativa e metanarrativa que o compõem, nesta montagem original de narrativas paralelas que são entrelaçadas pela personagem Edouard, explicitamente assumido como o “autor” do romance e seu narrador. O efeito deste jogo, em que a história elaborada é extremamente complexa, tem seu fio aparentemente suspenso para a inclusão dos “diários de Edouard”, em que aparece a reflexão tanto sobre o que acontece na narrativa quanto sobre as “personas” envolvidas, mas também toda a reflexão a propósito do romance e do escrever romances, onde dialoga com as concepções literárias de diferentes épocas da História, que aparecem ora por referência a personagens, ora a seus autores. [Na edição que manuseio, a tradução Celina Portocarrero, em notas de rodapé faz as indicações que permitiriam ao leitor ir busca das obras que são referidas.]
Há, pois, uma história, um enredo construído, um mundo ficcional por onde circulam pessoas, onde existem instituições, onde as coisas ‘acontecem’; mas o desenrolar da narrativa é frequentemente suspenso, aparecendo o seu “escritor-narrador” que confessadamente diz deixar as coisas fluírem, num romance sem plano prévio, sem fim definido antecipadamente. Ou seja, um “escritor” que não é um marionetista puxando fios para ter um enredo ‘comportado’.
“Os livros que escrevi até agora me parecem comparáveis àqueles laginhos dos jardins públicos, de contornos precisos, perfeitos talvez, mas nos quais a água cativa é inanimada. Agora, quero deixa-la escoar-se livremente, ora rápida, ora lenta, por meandros que me recuso a prever.
X … sustenta que o bom romancista deve, antes de começar seu livro, saber como esse livro terminará. Quanto a mim, que deixo o meu seguir ao acaso, considero que a vida nunca nos propõe nada que, tanto quanto um final, não possa ser considerado como um novo ponto de partida.”
Nesta breve passagem, o diário de Edouard aponta primeiro para o rompimento com seus livros anteriores, depois para o modo de construção deste que está escrevendo, cujo título retira de uma notícia: a existência de um grupo de garotos que estavam passando moedas falsas.
Consideremos um pouco o enredo da narrativa, tomando os diferentes “núcleos” de personagens: 1) a família de Pauline, meia-irmã do ‘autor’ Edouard, constituída pelo marido Molinier, juiz presidente do Tribunal e os filhos: Vincent, Olivier e Georges; 2) da família do juiz de instrução Profitendieu, interessa somente Bernard, o filho bastardo ; 3) o núcleo em torno do Conde Robert de Passavant, escritor e autor de A Barra Fixa [neste título, é evidente o contraponto com a posição defendida por Edouard, como mostra a citação acima] e que será uma espécie de êmulo ou o contrário do “autor”, com o qual compartilha a homossexualidade; 4) um núcleo mais secundário, do pensionato das famílias Azaïs/Vedel cuja relevância para o romance tem a ver com o fato de no pensionato se encontrarem os rapazes que verdadeiramente contam na história e por Armand Vedel; 5) Strouvilhou, do esquema das moedas falsas, cuja presença no enredo somente tem importância por reunir em torno de si os menores do mesmo pensionato que se tornam seus agentes para passarem as moedas falsas. Todos estes núcleos, suas ‘personas’ mantêm relações de proximidade com Edouard, o escritor e personagem central da história.
O enredo é cheio de idas e voltas, com viagens, com aparecimento e desaparecimento de personagens. Um resumo é sempre insatisfatório, para qualquer narrativa. Imagine-se para Os Moedeiros Falsos. De qualquer forma, apenas para auxílio da memória, retomo em traços este enredo.
Bernard Profitendieu descobre que é filho bastardo (acha cartas escondidas trocadas por sua mãe e seu amante) e sai de casa. Hospeda-se na primeira noite no quarto do amigo: Olivier Molinier (dormem juntos na mesma cama). Este lhe fala que no dia seguinte vai esperar seu tio Edouard na estação. Bernard, sem ter o que fazer, escondido, acompanha o encontro. Como Edouard é apaixonado por Olivier (e é correspondido pelo sobrinho), fica emocionado com o encontro e distraidamente joga fora o comprovante do depósito de sua bagagem. Bernard pega este comprovante e à tarde, depois da troca do funcionário, retira a maleta com todos pertences trazidos por Edouard. Usa o dinheiro, mas planeja uma forma de entregar a maleta ao seu dono e com isso aproximar-se do escritor. Isso acontece, e Bernard se torna seu secretário. Noutro espaço, Vicent (irmão de Olivier, que vive no entorno do Conde de Passavant) abandonara sua amante Laura (que era grande amiga de Edouard), já grávida. Foi para encontrar Laura que Edouard viera a Paris. Decide levar a amiga e seu recém secretário, nas férias de verão, para a Suíça, para onde vai a pedido de seu velho professor de piano que tinha um seguro em favor de seu neto Boris que vivia na cidade suíça. Hospedam-se no mesmo hotel onde se encontra Boris em tratamento acompanhado por uma médica polonesa com sua Borja. Esta presença permite a discussão do método psicanalítico usado no tratamento de Boris… Mas no mesmo hotel estivera e saíra há poucos dias Strouvilhou, que passara uma moeda falsa no comércio que Bernard acaba comprando. Fato aparentemente banal, cujo sentido somente ficará claro bem mais tarde quando Strouvilhou forma sua “quadrilha” de “moedeiros falsos”, entre os quais estará Georges, o sobrinho mais novo de Edouard.
Por outro lado, Olivier se aproxima do Conde Robert de Passavant, levado por Vincent que entrega o irmão ao escritor em troca dos favores que lhe prestara este: dinheiro para jogar; apresentação a sua futura amante, indicação ao Príncipe de Mônaco para se tornar um de seus cientistas… Vicent depois disso desaparece de enredo e só se toma notícia do fato de que está louco numa cidade africana, depois da morte da amante. Olivier é convidado para ser diretor de uma revista avant-garde que Passavant financiaria. A convite deste e com insistência de Vincent para que os pais permitissem, Olivier vai em férias de verão com Passavant. Mas tem ciúmes pelo fato de Bernard estar com Edouard. Duplica-se nos amores a contraposição entre os dois escritores. Para Edouard, Passavant é apenas um “artista” na aparência, medíocre, escrevendo romances ao gosto do público, mas este aparentemente ganha Olivier (ambos escritores são homossexuais).
Tudo voltará aos eixos quando, numa espécie de pré-lançamento da revista, Olivier se embebeda, é retirado do ambiente por Edouard e levado para sua casa: então o romance entre ambos tem seu começo. Despeitado, Passavant faz de conta que queria isso mesmo, convida Armand para dirigir a revista cujo primeiro número iria publicar arte avançada, incluindo a Mona Lisa de bigodes (uma remessa a Duchamp).
Tudo pareceria terminar em idílio, mas há também a presença do trágico. Boris, o neto do velho professor, foi trazido para Paris e ficou no pensionato da família Azaïs/Vedel. Tomou conhecimento no pensionato da morte de Barja, seu amor idílico. No pensionato estava o grupo dos trocadores de moedas falsas que, alertados que estavam sendo investigados, abandonam esta aventura e passam para outra, a criação de uma Confraria dos Homens Fortes. Armam uma prova para Boris que sonhava em ter algum afeto e entrar para a Confraria. Deveria ele usar a pistola (roubada de seu avô) num determinado lugar, em determinado horário dos estudos. Os outros membros do grupo (Georges e Phiphi) não sabiam que a arma estava carregada, mas o líder do grupo (Ghéridanisol) sabia e pouco se importava. No momento preciso e seguindo o ensaio, Boris acaba por se matar sem saber que estava fazendo isso. É o toque trágico do romance.
A liberdade com que agem os “atores”, o entrecruzamento de suas vidas no mundo do romance, suas falas próprias, tudo me fez recordar a análise bakhtiniana do romance polifônico de Dostoiévski. Certamente Gide, com este romance “sem plano prévio” ao menos do ponto de vista do que defende explicitamente na voz de Edouard, configura um outro tipo de romance com características polifônicas no sentido que lhe Balhtin (Problemas de Poética de Dostoievski).
Mas o enredo todo, que obviamente enreda o leitor, tem valor pelas reflexões que vão acontecendo no desenrolar dos fatos. E nas reflexões de Edouard em seu diário – este representa a metanarrativa: nele se discute a narrativa e a forma de narrar! É deste Diário que retiro algumas passagens, não só pelos temas, mas também pela forma de dizer que merecem registro.
“Chega o dia em que o se verdadeiro reaparece, de cujas roupas emprestadas o tempo lentamente despe… “ (p. 63)
“Nunca sou senão aquilo que acredito ser – e isso varia sem cessar, de modo que, frequentemente, se eu não estivesse aqui para aproximá-los, meu ser da manhã não reconheceria o da tarde.” (p.63)
“Despojar o romance de todos os elementos que não pertençam especificamente ao romance. Assim como a fotografia, recentemente, livrou a pintura da preocupação com certas exatidões, o fonógrafo certamente desembaraçará amanhã o romance de seus diálogos narrativos, dos quais o realista frequentemente se vangloria. Os acontecimentos exteriores, os acidentes, os traumatismos pertencem ao cinema; é preciso que o romance lhos ceda. Mesmo a descrição dos personagens não me parece pertencer convenientemente ao gênero. Sim, realmente, não me parece que o romance puro (e em arte, como em tudo, só a pureza me interessa) deva se ocupar dela. Não mais do que o drama. E que não me venham dizer que o dramaturgo não descreve seus personagens porque o espectador é levado a vê-los representados vivos no palco, pois quantas vezes não nos sentimos perturbados, no teatro, pelo ator, e sofremos por este se parecer tão pouco com aquele do qual, sem ele, tínhamos uma ideia tão clara. – O romancista, em geral, não dá suficiente crédito à imaginação do leitor.” (p.66)
“Muitas coisas escapam à razão, e aquele que, pra compreender a vida, aplica unicamente a razão, é como alguém que procurasse segurar uma chama com pinças.” (p. 159)
Nos diálogos dos acontecimentos narrativos, há passagens antológicas:
“Se pudéssemos recobrar a intransigência da juventude, o que mais nos indignaria seria aquilo em que nos transformamos.” (p. 148)
“… nos preocupamos tanto em parecer algo que acabamos por não mais saber quem somos…” (p. 179)
“Posso duvidar da realidade de tudo, mas não da realidade de minha dúvida.” (p. 174)
“Prefiro concordar de boa vontade com o que sei que não poderia impedir” (na voz de Pauline, a meio-irmã que se submete sempre) (p. 277)
“… as palavras sé envelhecem quando impressas!” (p. 133)
“Veja, a grande fraqueza da escola simbolista é de só ter trazido uma estética. Todas as grandes escolas trouxeram, com um novo estilo, uma nova ética, um novo caderno de encargos, novas tábuas, uma maneira nova de ver, de compreender o amor e de se comportar na vida. O simbolista, esse é bem simples: ele não se comportava diante da vida, não procurava compreendê-la, ele a negava, dava-lhe as costas. Era absurdo, não acha? Eram gente sem apetite, e até mesmo sem gula.” (p. 125)
Por fim, na edição que manuseio, a apresentação de Ubiratan Machado aproxima partes do romance à biografia do autor. Dá-lhe também um certo “tom confessional”, particularmente por causa das relações amorosas homossexuais. Segundo o crítico, “Em 1927, [Gide] resolve, afinal, publicar Se o Grão não morre… Nesta autobiografia analítica demonstra de forma eloquente o sentido de sua permanente disponibilidade, a atração contraditória pelo puritanismo e o imoralismo, a exaltação do homossexualismo e a velha aspiração a um evangelismo sem dogmas”.
Se há correlações com a biografia do autor, pouco importa: este romance já clássico é, talvez, um dos melhores exemplos de elaboração de uma narrativa acompanhada de sua metanarrativa.
Referência. André Gide. Os moedeiros falsos. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1983 (o original é de 1925).
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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