Atendendo a seus compromissos atrelados ao corporativismo e não à saúde da população, o presidente eleito fugiu a qualquer civilidade mínima com os médicos cubanos e com o seu país de origem.
Desde a Idade Média a construção da nova “cidade”, que remete a civitas, à civilidade, à polidez, estabeleceu-se uma oposição entre rusticidade/civilidade. Se no interior da “urbs” (donde urbanidade) as relações, os comportamentos foram se modificando saindo da mera força física para modos polidos de interação. O rústico passou a ser “negativo”.
No entanto, nos processos atuais do individualismo exacerbado, o sujeito como unidade de consumo, num exercício de um pequeno poder, aquele da “compra”, o conjunto de valores caros à civilidade deixaram de ser orgulho da cidade, do homem civilizado.
Tomemos o conceito de autenticidade. Era um valor ético. Migrou para valor comercial: um produto autêntico, não ‘fake’: corresponde efetivamente à etiqueta que o cidadão hoje ostenta no corpo como sinal de distinção. Esta migração para o comércio de um valor ético, tem um retorno para o comportamento das pessoas. Ser autêntico, hoje, é dizer o que pensa, sem qualquer análise efetiva deste pensamento primeiro, sem reflexão, sem medir consequências para os outros e até mesmo para si.
Foi este “valor” de autenticidade que esteve muito presente na campanha eleitoral de Bolsonaro: ele se apresentava como “autêntico”, dizendo o que pensa, sem esconder nada… e os ingênuos não perceberam que isso é parte da propaganda de si (e das empresas).
Foi esta suposta “autenticidade” que o levou a dizer besteiras sobre os médicos cubanos presentes no país graças ao programa Mais Médicos. Primeiro considerou seu trabalho como trabalho escravo, porque grande parte de seus salários vão para o seu país (que os formou gratuitamente, que mantém a formação de novos cubanos, que dá toda garantia à família do médico que sai de seu país para contribuir com a saúde de países com dificuldades). Depois criticou a formação destes médicos. Foi “autêntico” na crítica, como se todos fôssemos imbecis que não perceberíamos que compromissos levam a esta suposta “autenticidade”.
O governo cubano reagiu. Denunciou o contrato existente. E chamou seus cidadãos de volta para seu país. E isso mexeu com a vida de milhões de brasileiros… Mas isso o “autêntico presidente eleito” não levou em conta. Disse o que disse e esperava que tudo ficasse por isso mesmo, como ficaram por isso mesmo todas as mentiras usadas durante sua campanha à presidência.
Agora ficam os brasileiros das pequenas comunidades, dos grotões, das favelas, das periferias, sem a assistência de qualquer médico. Corre o ‘autêntico’ a dizer que Cuba foi irresponsável. Que ele não quer trabalho escravo no país, que há que se respeitar a legislação brasileira, etc. etc… Não adianta mais.
Certamente uns 20% dos médicos cubanos permanecerão no país. Muitos deles e delas vieram solteiros para o Brasil, aqui formaram família e têm todo o direito de aqui permanecerem [para felicidade das comunidades que poderão continuar com seu contributo para suas saúdes]. Certamente a imprensa badalará cada médico cubano que não retornar à Cuba, sem contar sua história, sem contar os vínculos que aqui estabeleceu, etc. Faz parte da “autenticidade” da notícia manipulada, aquela da meia verdade.
Corre hoje o governo moribundo a lançar editais para preencher vagas com brasileiros que sempre se recusaram a trabalhar em lugares indesejáveis… e correm para garantir a vinda de estrangeiros, mesmo sem o Revalida, para que comecem a exercer suas funções mesmo antes de dispor de registro na ordem dos médicos!
Não é possível compreender os rompantes de “autenticidade” do presidente eleito sem levar em conta este trânsito de um valor ético para valor comercial, de venda de si e dos produtos industriais.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Trackbacks/Pingbacks