Assim. De repente. Apareceram como bando e pousaram nas areias da praia. Mesmo apurando o olfato, nenhum indício do que procuram os corvos. É comum que apareçam quando o mar se embrabece e joga para a praia um peixe mais graúdo. O peixe morre afogado no seco; não sei por quais vias de comunicação, os corvos chegam para devorá-los, para sua segunda morte no estômago de corvos com fome.
Mas desta vez nada. Nada não, encontrei na caminhada apenas um pequeno peixe que não merecia tanto alvoroço e tantos convivas para uma festa que não haveria. Aliás, eles sequer deram atenção ao pobre peixe afogado na areia. Ficou lá esperando que uma próxima maré o levasse ao mar que não mais poderia gozar. Talvez a alma do peixe já estivesse longe, em outros mares a vasculhar outras praias e outros corpos onde entrar.
E os corvos ficaram por ali. A cada passada minha nestas seis voltas que pratico diariamente, observei bem os corvos: de longe pareciam todos iguais. Meus passos me levavam para mais perto e fui distinguindo o que antes eram pontos pretos móveis. Os corvos são feios, ainda que prestem um bom serviço à humanidade com seus bicos e estômagos.
Seria possível individuar cada corvo sob o meu olhar? Condenados que somos, por humanos, a tentar encontrar sentidos para tudo, seria necessário pinçar em cada corvo sua característica, sua alma, seus sentimentos… Dada a minha incapacidade de transitar entre os corvos sem que eles se afastem, difícil compreender sua língua, mais difícil ainda traduzi-la para a moinha língua.
Então percebi que não vindo de lá o sentido, eu lhes devia dar um sentido. Tal como aquele rei do conto Um rei à escuta [Italo Calvino. Sob o sol-jaguar] que dava os sons os sentidos que o habitavam, que estavam dentro dele, comecei a dar nomes aos meus corvos. Dado um nome, há um sentido. O nome genérico de “corvo” não diz mais do que uma classificação de muitos indivíduos. O nome próprio individualiza, e o sentido é sempre mais do que uma mera classificação.
Assim surgiu o Corvo Estogado. No passado fora muito falante, grasnava qualquer desachado. Tornava o inexistente, existente. Tinha força que lhe vinham das luzes platinas que o focavam. Depois, agora, neste bando todo, se tornou silencioso. Até parece cego pelo modo de andar desengonçado. Mudo e cego, não consegue, no entanto, tapar os ouvidos: as asas deixam os sons passarem. Meu pobre Corvo Estogado, sabido mas nada sábio, ergue o bico, aguarda a comida prometida… virá? Que mais terá de fazer além de assumir a cegueira, a mudez e tentar a surdez? Que trabalhos de Hércules o esperam para que cai do Corvo Bolsa a benesse prometida?
E eis ali o Corvo Bolsa: ele tem uma saliência no pescoço longo, por isso lhe dei o nome de Bolsa. Provavelmente é da bolsa que tira seu poder sobre os demais corvos: um seu olhar – quando olha, o que é raro – faz tremer uma revoada dos corvos todos. Mas eles voam e voltam, desafiantes, como quem diz “seu poder” depende do nosso, e se algum corvo for deixado de lado, abandonado no caminho e na revoada, nós corvos nos uniremos em votos e você, Corvo Bolsa, terá reveses em nossa casa.
Quando distingui o Corvo Banco, nome que lhe dei porque estava ancorado no espaldar de um banco da praia, desta praia pequena e grande, fiquei com medo, terror: o Corvo Banco me olhava com tanta vontade de bicar e levar tudo para o banco que temi por meus olhos, por minhas carnes: pelo olhar voraz, me sobrariam somente ossos e com ossos sem recheio não se caminha…
Desviei o caminho, não quero mais ver corvos. Eles irão embora assim que perceberem: por cá não há carniça. E amanhã a praia estará livre dos pontos pretos móveis: voltarão para donde vieram para me espantar momentaneamente.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Excelente, meu caro professor! Muito obrigada por partilhar seus textos!
Obrigado, Luciani pelo comentário. Bom encontrar você aqui.
Ótimo!
Muito obrigado, Rafael. Como em toda crônica, alguns de seus sentidos tem o limite da contemporaneidade.
Belíssimo conto! Os aspectos semântico para a palavra “corvo” no conto e os desdobramentos de sentido promovem no leitor diferentes sensações.É o que se tem como uma das pistas ” Condenados que somos, por humanos, a tentar encontrar sentidos para tudo, seria necessários pinçar em cada corvo sua característica, sua alma, seus sentimentos” (J.W.G). O leitor depara-se com os três (Corvo Estogado, Corvo Bolsa e o Corvo Banco)…instigante …
Adélia, foi para mim comovente ler sua citação! Esta intertextualidade de uma leitora atenta! Muito obrigado.