Os britânicos iniciam o enterro definitivo do Século XX

 
Uma das características que permanecerá na história do Grande Tempo relativamente ao século passado será o conjunto das tentativas de construção da solidariedade entre as pessoas e entre os povos. As utopias que enterraram os regimes monárquicos – as monarquias ainda existentes são meramente simbólicas – foram construídas ao longo do século XVIII, particularmente a definição de que todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido. O longo processo de implementação das democracias percorreu os séculos XIX e XX. No final do século XIX outra utopia foi elaborada, aquela cujo núcleo poderíamos chamar de “solidariedade”, em que o individualismo típico da aristocracia e dos nobres de todas as espécies vinha sendo substituído por uma relação de solidariedade.
 
Obviamente esta solidariedade não construiu qualquer igualdade, mas distribuiu de alguma forma e de forma melhorada o acesso aos bens sociais produzidos no interior de uma sociedade nacional. Talvez o melhor exemplo deste processo de solidariedade maior tenha sido a construção vagarosa do Estado de Bem Estar Social, experiência particularmente bem sucedida na Europa, e dentro dela, na Escandinávia.
 
Paralelamente a esta construção, outra começou a ser cuidadosamente elaborada: a solidariedade entre nações, entre culturas superficialmente muito diferentes, mas com um fundo comum que poderia unir os diferentes estados. O exemplo mais típico desta construção frágil é a União Europeia. Certamente houve outros grupos de nações reunidas, como a União Soviética, mas esta união na resultava do projeto de construir solidariamente uma sociedade, mas por uma imposição, e por isso mesmo não faz parte do mesmo movimento ainda que o internacionalismo comunista, em sua elaboração inicial, era a construção desta mesma solidariedade.
 
Seguindo o modelo da União Europeia, mas tomando apenas a questão das relações comerciais como fulcro, já que se iniciara com o neoliberalismo o velório da solidariedade, outras tentativas de formação de blocos já não estavam alicerçadas na vontade política da solidariedade, mas na tentativa de sobrevivência num mercado globalizado e extremamente desumano.O Mercosul é um exemplo deste tipo de “solidariedade de sobrevivência econômica”. 
 
Ao velório da solidariedade entre os povos, fundado no individualismo exasperado proposto pelo neoliberalismo econômico, deveria se seguir necessariamente a procissão de seu enterro. Os britânicos são os primeiros da fila, a carregar consigo o caixão que contém o sonho da solidariedade entre os povos ainda que de grupos e ainda que desviada somente para os interesses mais imediatos da economia.
 
O féretro seguirá seu fim: o século XXI será o século da destruição de toda e qualquer solidariedade de cima para baixo, ao mesmo tempo em que contraditoriamente outras solidariedades provisórias, passageiras, frágeis e não formalizadas começam a aparecer de baixo para cima: a solidariedade entre os pobres, entre os excluídos. Deste ambiente considerado como o “lixo” social pela economia neoliberal em que cada indivíduo vale pelo seu poder de consumo, é deste lugar que emergirá o futuro do século XXII…

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.