O velho que lia romances de amor, de Luis Sepúlveda

Eis uma história espantosa. Não sem razão um romance muitas vezes premiado: O France-Culture para o melhor romance estrangeiro; o Relais-H para o melhor romance de evasão; o Littérature de la Jeunesse para o melhor livro para jovens.

Luis Sepúlveda é chileno. Conheceu os cárceres da ditadura de Pinochet, e depois andou pelo mundo, vivendo em várias cidades de passagem, fixando-se por algum tempo em Hamburgo e em Paris. Atualmente vive na Espanha.

O espaço de O velho que lia romances de amor é a Amazônia, na porção do Equador, na província de Zamora Chinchipe, o povoado El Edilio, às margens do rio Nangaritza. A floresta e as águas ditam a vida dos poucos habitantes: a primeira porque lhes garante a sobrevivência, as segundas porque são o modo de locomoção humana (e a possibilidade de ir até a cidade de Zamora, a capital da província) e do transporte do que a floresta não dá: sal, cachaça Frontera, óleo para os candeeiros que parcamente iluminam as choças à noite.

O enredo começa com a visita semestral do doutor Rubicundo Loachamín, o dentista que perambulava pelos povoados extraindo dentes podres ou sãos, carregando dentaduras prontas que os pacientes experimentavam até acharem uma que lhes servisse. A dentadura será um bem muito cuidado, e a personagem principal, Antonio José Bolívar Proaño somente a usará quando estiver conversando com alguém, guardando-a cuidadosamente limpa enrolada num lenço.

O tempo começa com Antonio José Bolívar já velho. Mas sua história passada será contada ao longo do enredo: era habitante de um povoado serrano (nos Andes do Equador), casara-se com Dolores Encarnación del Santíssimo Sacramento Estupinán Otavalo. Nos primeiros tempos de casados, viveram com os pais de Dolores mas sua pouca terra não alimentaria duas famílias. Numa campanha de ‘colonização’ da região amazônica, partem para se estabelecerem em El Edílio como colonos, longe do povoado e de todos. A terra trabalhada para nela semear, durante a noite era retomada pela floresta. De febres morrerá Dolores. Dois anos perdidos tentando ser colono, mulher perdida, que poderia fazer? Voltar para o povoado serrano não podia, afinal “os pobres perdoam tudo, menos o fracasso”.

E Antonio José Bolívar abandona suas veleidades de colono católico e decide que dominará este ambiente. Viverá por um tempo só, mal vestido, comendo o que a floresta dá. Mas será picado por cobra e mais morto que vivo é encontrado por um grupo de índios xuar, que o leva para sua aldeia. Lá é tratado, curado e com os índios viverá por longo tempo. Com eles aprende a conhecer a floresta, seus ruídos, seus bichos, seus movimentos, suas águas. Está entre eles, mas não é um deles. Participa das cerimônias. Entre elas é descrita a festa de despedida de idosos que resolvem ser a hora de partir. Na grande festa, embebedam-se. Os xuar os cobrem com uma pasta doce, feita com mel e os levam para perto de formigueiros. Em pouco tempo as formigas farão seu trabalho e restarão somente ossos limpos! Estes ossos dos ancestrais os xuar carregam consigo quando mudam de lugar a cada três anos, tempo necessário para a florestas e seus bichos se recuperarem.

Como Antonio José Bolívar não é um deles, não pode ter mulher:

Não era um deles e, portanto, não podia ter esposas. Mas era como um deles, de tal maneira que o xuar anfitrião, durante a estação das chuvas, lhe rogava que aceitasse uma das suas mulheres para maior orgulho da sua casta e da sua casa.

A mulher ofertada levava-o até as margens do rio. Aí, entoando anents, lavava-o, enfeitava-o e perfumava-o, para depois regressar à choça e retouçar em cima de uma esteira, de pés para cima, suavemente amornados por uma fogueira, sem deixar em momento algum de entoar anents, poemas nasais que descreviam a beleza de seus corpos e a alegria do prazer aumentado infinitamente pela magia da descrição.

Era o amor puro sem outro fim que o próprio amor. Sem posse e sem ciúme.

– Ninguém consegue atar um trovão e ninguém consegue apropriar-se dos céus do outro no momento do abandono.

Quando um grupo de gringos aparece pela região e mata alguns índios, Antonio José Bolívar sentirá que era o momento de retribuir os cuidados que com ele tiveram os xuar. Sai à caça de um destes gringos que se perdera pela floresta. Mata-o e fica com sua espingarda. Como tirara a vida de alguém, já não podia mais permanecer entre os índios que jamais matam por matar, mesmo em vingança. É hora, então, de voltar. Tomará uma canoa dada pelos índios e se estabelecerá em El Idílio agora como conhecedor da mata e dela sobrevivendo, não como colono, mas como um homem da floresta.

El Idílio tem um administrador, um representante do governo. E em carta altura chegam estranhos ao lugar, instalam-se na administração e chamam o povo para votar. Ninguém sabia muito bem o que isso poderia ser. Quando chega a vez de Antonio José Bolívar se identificar, pedem-lhe que leia uma frase, e ele redescobre então que sabe ler, mesmo não sabendo escrever.  Teve direito de votar. Mas votar em quem? Em Sua Excelência, o candidato… como lhe instruíram os coletores do votos.

Descobrindo que sabia ler, ele quererá ler… mas não tinha o que ler. Era, pois, um saber inútil. Como não tinha qualquer dinheiro, resolve sair pela mata para caçar vivos alguns dos bichos que sabia que os brancos gostavam de ter: micos, papagaios, tucanos e outras aves. Com isso em mãos, pede carona no Sucre, o barco que trazia o dentista ao povoado e vai para Zamora. O dentista consegue que uma professora da cidade o hospede e ele conhece a biblioteca da professora: uns cinquenta livros que o maravilham. Lê-os até encontrar o gênero de que realmente gostou: os romances de amor, gosto que a professora reprovou. Mas ele não abriu mão e retorna para com alguns romances. Torna-se então o leitor de romances… e a cada seis meses, o dentista o abastece com novos romances.

O acontecimento fundamental da história será a chegada de uma canoa em que índios xuar traziam um corpo de um gringo morto. Um caçador que vinha ainda com pequenos couros de filhotes de onça. Se fosse qualquer outro, o corpo seria jogado no rio. Mas um gringo sempre traz complicações: o administrador é chamado e imediatamente culpa os próprios índios pelo assassinato.

É então que Antonio José Bolívar mostrará seus conhecimentos. Examina o cadáver, sente-lhe o cheiro de mijo de gato e sentencia: ele foi morto por uma onça. Por uma fêmea desesperada porque o gringo lhe matara os filhotes, e provavelmente o macho. E uma fêmea desesperada se tornaria um perigo para todos: ela se vingaria em qualquer humana que encontrasse. Foi o que aconteceu: matou o caçador e ficou à procura de outros para matar. Fica-se sabendo de segunda vítima quando aparece no povoada uma mula assustada e ainda com arreios. Demoram a fazê-la parar, descobrem os ferimentos de unhas de onça e também seu dono: o Alkaseltzer Miranda, que vivia na floresta com uma venda onde garimpeiros podiam encontrar a cachaça Frontera, alguns utensílios, sal e alkaseltzer, daí o apelido.

Organiza então o administrador um grupo de homens para irem até a venda, e para caçarem a onça. A descrição da caminhada é antológica! Somente o contato direto com o texto para usufruir tanto dos conhecimentos de um homem da floresta, quanto o ridículo de um administrador que nada sabe: um contraponto entre dois homens que vivem num mesmo povoado, um com o poder outorgado, outro com o poder do saber.

Depois de muitas peripécias, chegam ao território do Miranda e descobrem dois cadáveres: de um garimpeiro que pouco aparecia e do próprio Miranda. O grupo aloja-se na casa que fora do vendedor. À noite ouvem os ruídos da onça que os cerca, que os vinha vigiando há muito tempo. Ela se aproxima, mas volta para a floresta. Astuta e inteligente, estuda os movimentos dos homens.

Há medo. E o administrador faz a Antonio José Bolívar uma proposta: o grupo voltaria para El Idílio, e ele ficaria sozinho com o compromisso de matar a onça. Em troca receberia a autorização para continuar a viver em sua choça, construída em terras do Estado.

Seguem-se, então, uma luta de caça em que se enfrentam o homem e a onça. São passagens brilhantes, a mostrar um conhecimento profundo da floresta e dos hábitos do bicho. Eles se encaram. O caçador percebe que a onça quer que ele penetre floresta adentro, onde se tornaria presa fácil. Mas ele consegue fugir para perto do rio, uma garantia de sobrevivência e fuga. A onça o segue, mas não o ataca. Fica no alto de uma ribanceira, agitada e triste. Depois sai, esconde-se na floresta. O caçador entendeu: o macho estaria por ali, ferido e em agonia. Sobe até onde há pouco estivera a fêmea desesperada, vê o macho e lhe dá o tiro de misericórdia.

A partir daí retorna a luta. Antonio José Bolívar, com sono, descobre uma canoa na praia. Dorme sob ela e acorda percebendo o cheiro do animal, que mija nele para dele tomar posse. A onça não consegue desvirar a canoa, então começa a cavar e quando uma de suas patas chega perto, Antonio José Bolívar dá um tiro na pata. Calcula mal o tiro, e restos de chumbo atingem também seu pé: estão ambos feridos. A onça se afasta. E ele sai de seu esconderijo entendendo que chegou a hora da decisão. Carrega a espingarda e sabe que somente terá uma chance. Quando a onça salta para atacá-lo, dispara. A onça cai de seu voo. Está morta e ele carregará seu corpo para rio: que suas águas a levem para o meio da floresta, para os espaços a que homem algum se atreveu a chegar.

Antonio José Bolívar Proaño retorna para casa e para seus romances de amor.

Referência. Luis Sepúlveda. O velho que lia romances de amor. Lisboa : Edições Asa, 25ª. edição, 2007. (Há edição brasileira, com muitos exemplares disponíveis na Estante Virtual.)

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.