O tronco, de Bernardo Elis

Este é um romance regional, cujo ambiente é o sertão goiano, o norte de Goiás (grande parte do território em que se dão os fatos da narrativa está hoje localizada no estado de Tocantins). Os tempos são aqueles do coronelismo em que cada chefe de clã, com suas vastas terras, imperava e impunha a sua lei. O regime com os trabalhadores, os vaqueiros e “a gente de casa” era o da “escravidão” do trabalhador supostamente livre, sempre devendo ao patrão e jamais recebendo qualquer pagamento em “efetivo”.

O livro abre com uma explicação inusitada para o leitor contemporâneo:

UMA EXPLICAÇÃO

   Com exceção de pormenores, os fatos centrais desta narrativa aconteceram realmente em Goiás. Os personagens, entretanto, tendo tudo de comum com o tipo social que representam, são fictícios. O autor não quis retratar ninguém, nem copiou de nenhum modelo vivo ou já morto.

Entretanto, os sobrenomes das personagens são conhecidos ainda hoje: os Melos, os Lemes, os Caiados… de modo que a ficção de então mantém traços do que realmente aconteceu e continua a acontecer nos rincões interiores do país, mas com seus grandes chefes de clã urbanizados e se revezando no exercício do poder político, sem que nenhum dos clãs tenha de fato perdido o poder econômico de que sempre dispuseram, com as terras repartidas entre os inúmeros herdeiros, cuja posse tem suas origens nos esbulhos e na simples ocupação como seu do que era comum.

O pequeno lugarejo, palco das ações do enredo, é denominado “Duro”. Ao final do volume, há um curioso ‘mapa’ com a indicação das casas dos moradores-personagens da história. E também outro mapa, este de parte do então estado de Goiás, mostrando o caminho percorrido pelas forças policiais de Goiânia até ao povoado de Duro.

Como em todos os povoados, com grandes fazendas a seu redor, cujas distâncias se medem em dezenas quando não centenas de léguas, as relações familiares entre as “pessoas de bens” é um emaranhado em que se compartilham tias, avós, primos… Obviamente, isto entre “gente de bens”, porque os sem-nada não contam, não existem ainda que copulem e produzam outros tantos “humanos” para viverem sob as ordens e comando dos patrões de seus avós, pais e irmãos a cuja “tribo” o recém- nascido haveria de se juntar. Só quando aconteciam grandes ‘convulsões” alguns conseguiam fugir e sair do jugo do mesmo e eterno patrão:

– Pessoal ingrato, – berrava a velha. Tinha de um tudo e foi só pegar uma folguinha, abriu a pala no mundo! Onde é que vão encontrar o trato que tinham aqui! – Camila, uma preta velha, filha de escravos, é que se multiplicava para atender à velha, indo e vindo pela casa, no seu passo manco, os pés cheios de cravos. Camila não abandonava a velha e a servia com carinho, a que Aninha [a velha] respondia com gritos e maus tratos. Para Aninha, servir era apenas obrigação da preta.

Nesta história se contrapõem duas perspectivas de mundos possíveis: aquela da manutenção do coronelismo e do esbulho representado na história pelo coronel Pedro Mello e seu filho Artur Melo, e aquela representada por Vicente Lemes (parente dos Melos, obviamente) em que as relações sociais efetivas deveriam se conformar às leis existentes, num processo de construção de uma modernidade num espaço social habituado aos desejos e mandos dos coronéis. Vicente “acreditava em lei, acreditava em justiça e probidade, não podia pactuar com tais bandalheiras…”.

Quando o exercício do poder político do estado tinha nos Melo sua base, estes mandavam e desmandavam na região, como seus vice-reis. Artur Melo, então juiz local, “nomeia” Vicente para o cargo de escrivão. Ele quis impor a lei, mas percebeu logo ser impossível acabar com as roubalheiras do foro onde as decisões eram ditadas segundo o interesse em se apropriar das terras dos condenados ou das viúvas. Vicente vai embora do Duro, e na capital há uma mudança política. Com as benesses da nova situação, retorna a Duro como coletor estadual.

E então o motivo da briga aparece: no rol de bens do inventário da viúva de um assassinado, não aparecem terras e gado, somente quinquilharias. O coletor não aceita porque isso representava sonegação de impostos da Fazenda Estadual. O juiz, de seu grupo, Valério Ferreira, despacha notificando Artur Melo, advogado da viúva, de que teria de refazer o rol de bens. Foi o estopim.

Artur Melo tenta uma reconciliação, esperando que juiz e coletor dessem a bênção: ele ficava com o gado todo e terras, comprando-as da viúva, sem pagamento dos impostos devidos. Não houve concordância.

A viuvez motivo do inventário era consequência de dois crimes: Vigiliato havia se enamorado pela mulher de um parente e protegido dos Melos. Vivia assediando a mulher. E esta não gostou da história e contou tudo ao marido, que se armou para matar o sedutor. Mas este foi mais rápido e matou o marido. Como vingança, Pedro Mello o mata e se vangloria do fato, mandando inclusive construir um marco no local onde o assassinado caiu. É da viuvez do protegido dos Melos que vem o inventário com um falso rol de bens. Dois crimes no passado, uma falsidade ideológica no presente.

Sem acordo, o assunto seguiu rendendo. Artur Melo se recusou a refazer o rol de bens, juntou seus capangas na fazenda “Grota”, e vem para Duro, invade o foro e dele retira tanto o processo de inventário como outros processos de seu interesse.

Assim, a perspectiva legalista de Vicente é derrotada. Ele vai para a capital e retorna acompanhado do juiz, Carvalho, e de grande força policial. Abre-se inquérito de apuração dos fatos. E desta vez esperava Vicente que a justiça seria feita, e não se repetiria o mesmo que acontecera no passado – e aqui há um feedback no enredo, mostrando outra comissão chefiada por juiz com aparado policial, mas tanto o juiz quanto os policiais sendo cooptados pelos poderosos Melos, de modo que tudo se resolveu a seu favor.

Agora, tudo parecia correr a favor da lei e da justiça. O grande número de soldados e as relações do grupo de Vicente com a capital fizeram Artur e seu pai se refugiarem na fazenda chamada “Grota” e aí formam um exército de jagunços. O juiz Carvalho vai à fazenda e faz acordo: Artur Melo dispensaria seus homens, entregava o processo de inventário, e o juiz impronunciaria o clã. Artur fecha o acordo e entrega o processo ao juiz, que retorna para Duro vitorioso nesta etapa. Mas nenhum deles pensava em cumprir o acordo. Artur enviou seus homens para outra fazenda de sua propriedade, na divisa com a Bahia; o juiz Carvalho aproveitou-se imediatamente disso e mandou os policiais irem à Grota prender os acusados.

Na ação, a polícia mata o todo poderoso chefe do clã, Pedro Melo; Artur escapa escondendo-se na tulha de farinha. Hugo Mello é preso e trazido para a cadeia de Duro. O juiz Carvalho pronuncia todo clã dos Melos e dá por finda sua tarefa, retornando por caminhos tortuosos para a capital, deixando o grosso da tropa em Duro para garantir a ordem. Ele sabia que Artur reagiria.

Este, Fugindo, organiza uma grande força contando com os grupos de dois chefes de jagunços: Roberto Dorado e Abílio Batata, que efetivamente, a partir de então, passam ao comando porque do bom resultado da ação sairiam enriquecidos saqueando todas as fazendas das redondezas e roubando todo o gado. Artur passa então a “presidiário” de seus próprios jagunços.

Os dois lados sabem que haverá “guerra”. Quatro “quarteis” são organizados, cada um sob o comando de um alferes: Xavier, Eneias (na casa onde estavam presos os homens parentes de Artur), Severo (na casa em que ficava a cadeia, onde estava preso Hugo Mello) e o quartel de Mendes de Assis, o oficial que comandará a ação em que Pedro Mello foi assassinado.

Os policiais, mal armados e sem munição sabem que não poderão sair vitoriosos. Os oficiais então constroem um estratagema: trazem os familiares de Artur da Grota e prendem os homens, deixando as mulheres – chefiadas pela matriarca Aninha, viúva de Pedro Melo – na grande casa do fazendeiro em Duro. A ideia é fazer chegar a Artur a informação que no primeiro tiro de um assalto à vila, a polícia mataria todo o clã: Severo mataria Hugo Melo; Eneias mandaria matar os homens presos; e Mendes mandaria matar as mulheres.

O assalto acontece, porque para Dorado e Batata, tanto lhes fazia se os parentes de Artur morressem. A narrativa deste assalto é o ponto alto de todo o romance. Obviamente as forças policiais são batidas. Mendes não cumpre a matança das mulheres por intervenção e exigência de Vicente, mas no quartel de Eneias os presos são assassinados e Severo manda matar Hugo Melo, antes dos policiais que sobraram do embate fugissem, sempre perseguidos pelos jagunços.

Vicente é instado a fugir, junto com os companheiros que não foram mortos, pela matriarca Aninha, a cujo guardo deixou a mulher e filha. Segue-se então a narrativa desta fuga e as reflexões de Vicente que deveria começar vida nova, no sul de Goiás. Enquanto a região de Duro era saqueada pelos jagunços e ficava agora sob o poder o coronel Artur Melo com o que lhe sobrou da família.

Como romance regional, obviamente ao longo da narrativa aparece o falar dos policiais, dos jagunços e dos vaqueiros, uma representação desta fala feita pelo escritor, de que o parágrafo a seguir é exemplo. Trata-se de resposta de um policial a Vicente que lhe manda sair da casa de Aninha, depois que Vicente consegue salvar a vida das mulheres. Quem fala é o policial Fabriciano:

– Tenho nada com isso, – resmungava Fabiciano. Me dero orde pra fica aqui e pronto. Mecê tá pensano qui eu sô aquele sem vergonha do Mané Vitô? Tá munto ingandado demais. Mané Vitô véve falando qui eu sô covarde pramode num matei o véiu. Covarde é ele que já fugiu. Agora qui eu quero vê quem qui é valente, quem qui tem saco. Eu num saio da vila. Quero mostra presses jaguncinho quem é o sordado Fabriciano…

Há também passagens que mostram as posições políticas do narrador. São falas de suas personagens, mas são discursos políticos sobre as relações de poder existentes numa sociedade como a que este romance retrata. Tomemos dois exemplos, o primeiro de uma conversa que ocorre entre soldados, antes do assalto à vila:

– Jagunço é que é bão, – repetia o tal soldado que enaltecia o cangaço, sob protestos do praça velho: – Soldado é otoridade. Afirmou sua verdade, olhou para a cara de uns soldados próximos que o fitavam e repetiu de novo a frase: – É otoridade. É! É otoridade. Nisso, a prosa pegou fogo. Um soldado estava dizendo que jagunço lutava de besta que era. Jagunço eram os vaqueiros, eram as pessoas pobres que Artur Melo vivia explorando, matando e espancando. Jagunço eram pessoas como Berandolina que os patrões não deixavam viver em paz. O soldado molhado tinha sua opinião e todos ouviram em silêncio, pois ele era o polo das atenções, no momento: – Eu acho que soldado e jagunço é a mesma coisa. Agora, o que eu acho besta é soldado e jagunço brigar, pra mode defender o coronel João Alves e o coronel Artur Melo. Soldado vai morrer, jagunço via morrer pros coronéis ficarem mais ricos, mais gordos, mais poderosos.

O segundo exemplo é uma reflexão de Vicente em fuga que ouve os gemidos de um homem ferido:

Quem seria que gemia daquela forma? Quem seria esse homem valente, esse herói que entregou sua vida pela defesa de uma causa que Vicente não tinha coragem de defender? Certamente era algum jagunço, algum sertanejo completamente alheio a todo aquele conflito de interesses, arrastado à morte pelo espírito de aventura, pelo ingênuo sentimento de solidariedade para com algum amigo ou patrão que o explorava impiedosamente, que o trazia escravizado e dominado.

Algumas curiosidades do exemplar em que leio a história: trata-se de exemplar da primeira edição (1956), que contém uma dedicatória do autor a Artur Neves. O exemplar foi encadernado (capa dura), a capa original da brochura foi conservada, mas solta. A quarta capa se perdeu, e com ela a segunda parte da orelha do livro. Até a página 85 há marcações de algum leitor, em caneta vermelha, sublinhando termos ou passagens, datando o ano da febre espanhola, e uma passagem sublinhada – “A claridade das estrelas coava-se pela palha do rancho e pelos buracos do pau-a-pique, iluminando os cômodos” – em que à margem está escrito: “citar no “Ouriote” ou no “Quiriote” – a letra é pouco legível.

Por fim, a leitura deste romance remete o leitor a suas antigas leituras: Chapadão do Bruge e Vila dos Confins, de Mário Palmério; os clássicos Vidas Secas e São Bernardo de Graciliano Ramos e o monumento literário brasileiro: Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. O ciclo dos romances regionalistas em nosso tempo foi retomado por Francisco Dantas a partir de Coivara da Memória (1991).

 

Referência: Bernardo Ellis. O tronco. São Paulo : Livraria Martins Editora, 1956.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.