Este é o romance de estreia do cabo-verdiano Germano Almeida, escrito em 1988 e publicado em 1991. Usando uma técnica de compor a narrativa que inclui um outro texto, outra narrativa, inicia-se o romance com a leitura do testamento do Sr. Napumoceno, comerciante do ramo de importações e exportações de Mindelo, na ilha de S. Vicente. Viera pobre da ilha de S. Nicolau em busca de oportunidades de trabalho. Assim que chegado, procurou uma referência que tinha, o Dr. Souza, que fora colega de escola de um tio seu. Foi o Dr. Souza que lhe arrumou o primeiro emprego, na empresa Baptista, Ltda como menino de recados.
Avançou na empresa e chegou a subgerente, e como tal realizava para os patrões importação e exportação sem pagamento de impostos. Por um tempo fez isso sem nada lucrar, mas depois quis repartir com os patrões os lucros. Foi assim que começou a ir formando o capital que lhe permitiu estabelecer-se por conta própria. E com muita sorte e gana, se transformar num homem rico. Um dos episódios narrados de sua sorte foi a aquisição de 10.000 guarda-chuvas: ele havia se enganado, queria comprar 1.000 para serem usados como guarda-sol. Mas justamente no dia em que chegaram os guarda-chuvas, houve uma chuva constante na cidade, de modo que em poucos dias vendeu todo seu estoque fazendo um grande lucro.
Episódios como este vem todos narrados no testamento! Um documento de 387 páginas que o notário começou a ler em voz alta mas que foi perdendo a voz, tendo que se substituído primeiro por uma das testemunhas, o amigo íntimo do falecido, o Sr. Fonseca e logo após pela segunda testemunha, o Sr. Lima.
Presente o sobrinho Carlos, que se imaginava herdeiro universal da fortuna amealhada pelo velho comerciante, ficam todos surpreendidos com o que narrou o testamenteiro: ele tinha uma filha, Maria das Graças, que “fizera” com a servente da limpeza: um dia ela chegou com uma saia verde e uma blusa branca, e ele não resistiu. Eram justamente as cores do Sporting, time para o qual torcia apaixonadamente. Assim, a secretária de seu escritório, a partir do primeiro avanço, tornou-se a cama do casal. Quando soube que Dona Chica estava grávida, tentou convencê-la a praticar aborto. Mas ela não aceitou. Como se tratava de uma relação inaceitável para o ambiente social, D. Chica foi aposentada pela empresa que lhe pagou religiosamente uma mesada com que se sustentava, ainda que na pobreza.
Somente quando Maria das Graças tinha 16 anos é que o pai a conheceu, sem se dar a conhecer como pai. Tentou até mesmo dar à menina presente de aniversário, mas ela recusou imaginando que o “velho” tinha outras pretensões, como se a estivesse comprando.
Foi somente após a morte e na leitura do testamento que Maria das Graças ficou sabendo que era filha do Sr. Araújo e que se tornara herdeira de seus bens, ao mesmo tempo, que passou a ter um primo, Carlos Araújo, inconsolável pela patranha que lhe fez o tio, lhe deixando somente como herança um sítio cujo valor era de pequena monta.
O romance, que se lê de uma só sentada, é muito bem escrito, com uma trama que leva a ir conhecendo minuciosamente a vida da personagem, uma personagem morta mas que continua a falar a partir dos escritos que deixou. Foi lendo estes escritos que Maria das Graças descobriu o grande amor da vida de seu pai: Adélia, objeto de três cadernos manuscritos deixados pelo falecido.
Adélia, por quem se apaixonou, ele a chamava de “olhos de gazela”. No entanto, ela tinha marido que estava no estrangeiro. Quando de seu retorno, ela desapareceu da vida do Sr. Napumoceno. Foi nesta altura que ele tirou suas primeiras férias, indo rever os lugares de sua infância, na ilha de S. Nicolau. De lá também partiu para os Estados Unidos e voltou da América impressionado pelo modo de vida dos norte-americanos e por suas invenções. De lá trouxe algumas quinquilharias inúteis em Cabo Verde, novidades que instalou no seu escritório, como um aviso de luzes com cores verde, amarelo e vermelho. Quando lhe batiam à porta, ele apertava o botão segundo o que naquele momento lhe apetecesse. Verde, pode entrar; amarelo, espere um pouco; vermelho, estou definitivamente ocupado. Outra quinquilharia foi uma secretária eletrônica, em que durante todo o tempo da narrativa gravou apenas uma mensagem.
E esta mensagem foi uma brincadeira do sobrinho. Acontece que o velho lhe confessara que estava querendo se casar (com Adélia); e o sobrinho gravou uma mensagem, acusando-os do mercado negro de seus começos na Batista, Ltda. e chamando-o de velho imbecil que pensava ainda poder ter mulher. O tio reconheceu não a voz do sobrinho, mas a forma como ele se referia à ilha de S. Vicente: Vincente, erro que muitas vezes seu tio corrigira. É esta a mensagem que levou o tio a praticamente deserdar o sobrinho…
Somente no final da história, num encontro de Graças com Carlos, este revela que todo o Mindelo sabia dos amores de Napumoceno com Adélia; que todos sabiam que ele tinha uma filha bastarda; que todos sabiam que o Sr. Fonseca, que naquelas alturas servia de secretário ad hoc de Maria das Graças para bem realizar todas as determinações do testamento.
Uma destas determinações era entregar o legado que deixara para Adélia, um livro, incluindo a entrega de um livro: Só, de Antonio Nobre. Esta foi a única determinação testamentária que não foi possível realizar. Apesar de todos os esforços tanto da filha quanto do Sr. Fonseca, incluindo comunicado por rádio anunciado três vezes ao dia durante uma semana e escrito com o maior cuidado para que não se revelassem oficialmente os amores do falecido:
… o ilustre extinto Napumoceno da Silva Araújo que há cerca de um mês nods deixou abandonados na dor irreparável de sua perda, legou muitos dos seus objetos pessoas a diversos cidadãos desta cidade que ele amou como sua terra natal. Quase todas essas pessoas forma localizadas e os diversos legados devidamente entregues para perpetuação da memória do sempre saudoso e chorado desaparecido. No entanto até agora não nos foi possível descobrir o endereço de uma sua amiga de infância, senhora de nome Adélia, a quem ele deixou uma valiosa lembrança. Pede-se por isso à Exma. Sra. D. Adélia o favor de entrar em contato com os escritórios da firma Araújo, Ltda, para o recebimento em mão própria do objeto que … (p.110)
O estilo do testamento e o estilo do narrador se entrecruzam, e frequentemente este dá espaço para entrada, em discurso direto, das falas do falecido e das falas das personagens envolvidas com o cumprimento das determinações do testamento, em particular Maria das Graças, agora Araújo, o sobrinho Carlos e o Sr. Fonseca, autor do comunicado radiofônico acima transcrito.
O interessante de perceber, nestes cuidados todos, é que, como revelou o sobrinho Carlos, todos em Mindelo sabiam da vida de todos… até mesmo as intenções do Sr. Fonseca em estar servindo de secretário da herdeira: ele tinha interesse numa das casas que deixara o falecido. Maria das Graças, que ouve as afirmações de Carlos, fica surpresa pois apenas na véspera o Sr. Fonseca havia se candidatado a comprar a referida casa, e ela respondera que somente depois de tudo arranjado, iria decidir. No entanto, tudo já era sabido na sociedade mindelense.
Germano Almeida escreveu vários outros romances, e acaba de receber o Prêmio Camões (22.05.2018), fato que o distingue na literatura de língua portuguesa.
Referência: Germano Almeida. O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo. Lisboa : Caminho, 1991.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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