Todos os dias, quando ando pelas ruas da cidade, vejo um cartaz, colado em inúmeros carros, com a fotografia de um candidato à Presidência do Brasil, de rosto trágico pelo riso de escárnio. Tempo todo e em todos os lugares, o candidato anda de rosto sério, de cenho carregado, com os olhos apavorantes. Para a imagem de propaganda, pousou com riso fechado, riso de aparência, não ridente. Esta encenação do riso falso me motivou a expor aqui os elementos estéticos do riso alegre em contraposição aos elementos taciturnos da seriedade. Busco estes elementos de contradição riso-seriedade nos escritos de M. Bakhtin, atualizados e aplicados aos nossos candidatos, com extensão a todos os brasileiros e a todas as brasileiras de hoje.
Primeiro, o problema da seriedade – quais são os elementos de expressão externa da seriedade? Ou, quais são as imagens e quais os modos de expressão corpórea da seriedade? Um corpo humano sério apresenta, nas palavras de Bakhtin,
”o cenho carregado, os olhos apavorantes, as rugas e pregas juntas pela tensão, etc., são elementos de pavor ou intimidação, de preparativo para o ataque ou para a defesa, um chamamento à subordinação >, uma expressão de fatalidade, de necessidade férrea, de peremptoriedade, de indiscutibilidade. O perigo faz o sério”,
Não há ambiguidade, de um rosto sério. As características estão estampadas nos rostos humanos (a face, os olhos, a testa…), porém elas se estendem pelo corpo inteiro. E como é um corpo tenso? É um corpo rígido, rijo, duro, enérgico, inflexível, que não se dobra, áspero, ereto, direito, etc. A exteriorização dos elementos de pavor ou intimidação, de preparativo para o ataque ou para a defesa, isto é, a seriedade e a expressão da autoridade, e daí o poder autoritário, que se manifesta e é próprio do imperador, do rei, do ditador, do comandante, da autoridade autoritária, do chefe, de quem usufrui e usurpa do poder para a subordinação dos outros. É uma relação de impostura da vontade da autoridade aos súditos (é necessário distinguir a autoridade sensível, legítima, portanto democrática, da autoridade autoritária ilegítima, portanto unilateral imposta). O corpo do sério é obtuso, sempre pronto “para o ataque ou para a defesa”. É possível associar esta atitude aos ditadores, militares ou civis, de épocas mais recentes. Quem não se lembra dos militares presidentes da ditadura de 1964-1985? Rostos carregados e olhar inquisidor e fustigativo por traz dos óculos escuros, de discursos curtos e ameaçadores, com tom grave da voz, estabelecendo ordens proclamadoras de intimidação e ameaça. Quem não se lembra do rosto apavorante do presidente Ernesto Geisel? E do general João Figueiredo, o presidente corporal, que exercia o comando do poder presidencial corporalmente em montaria de cavalo fogoso, como se estivesse em corrida de caça aos lobos? A seriedade corporal era completa, de corpo inteiro. Praticava a “política do corpo”. O corpo do presidente ditador precisava ser todo rijo e o rosto taciturno.. A análise de uma pessoa séria revela medo ou ameaça. Só as culturas dogmáticas e autoritárias são unilateralmente sérias. A violência é séria e desconhece o riso.
Em oposição ao quadro do sério no mundo, como seria o quadro, o mosaico de imagens e tons do riso no mundo? Quais são os elementos de expressão externa do riso? Quais são as formas das imagens que se revelam desde o riso sutil até o riso às gargalhadas? Uma constatação do riso nas pessoas vivas, existentes, corpóreas, reais, o riso nos olhos, no rosto, nos lábios, na face, no corporal interior, quando este se expõe em movimento de festa, de comemoração, de fantasia, de representação. “O riso alegre, aberto, festivo. O riso fechado, meramente negativo da sátira. Não é um riso ridente. O riso de Gógol é alegre. Riso e liberdade. Riso e igualdade. O riso aproxima e familiariza” (Bakhtin, 2006).
Seria o riso equivalente à liberdade? O riso é expressão da liberdade? Seria o riso uma atitude de insubordinação às imposturas da seriedade autoritária? O riso tornaria as pessoas iguais? O riso tem potencial para superar a desigualdade? O “rir com” aproxima as pessoas e cria relações íntimas, familiariza, pois ele é solidário, partidário e partícipe, cooperativo, interativo, responsivo, democrático. Já o “rir de” pode denotar escárnio, ironia, sarcasmo, ridicularização. Para terminar, sempre com Bakhtin:
“O riso abre cancelas, torna o caminho livre. Tudo autenticamente grande deve incorporar o elemento do riso”. […] “A violência desconhece o riso. A análise de uma pessoa séria é de medo ou ameaça. Análise de uma pessoa que ri leva à alegria e liberdade. A seriedade amontoa as situações de impasses, o riso se coloca sobre elas, liberta delas. O riso não coíbe o homem, liberta-o”.
É assustador ver um riso encenado, não real, não verdadeiro, o cenho carregado, rosto severo intimidador e o corpo obtuso, com as duas mãos imitando segurar um fuzil com os dedos disparando o gatilho. É esse o presidente que queremos?
Professor, pesquisador, escritor
José Kuiava é Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp (2012). Atualmente é professor efetivo- professor sênior da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Planejamento e Avaliação Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: autobiografias.inventário da produção acadêmica., corporeidade. ética e estética, seriedade, linguagem, literatura e ciências e riso.
Excelente texto Kuiava. Veja q este homem sério pronto para o ataque ou para a defesa desvela não só o homem autoritário mas tb aquele lobo solitário que luta pela sobrevivência na selva em que se tornou a sociedade neoliberal. Acho que há esta identificação entre este sério falso e o sério da sobrevivência do povo que tem medos difusos – de perder o emprego de não ter o que comer amanhã de não corresponder ao exigido etc. O sério falso está sendo lido pelo povo como seu próprio serio medroso. Não por acaso onde impera mais despreocupação porque sempre sobreviveu a tudo, no Nordeste, este sério falso não engana. Onde está mais desenvolvido o capitalismo neoliberal, mais votos para está seriedade falsa.