Textos de Arquivo XXV: O professor como leitor do texto do aluno
Nota prévia
Publicado no livro Questões de Linguagem (Maria Helena Martins (org). São Paulo, Contexto, 1991), este texto resulta de uma exposição oral no Congresso Brasileiro de Alfabetização, realizado em São Paulo, entre 13 e 15 de setembro de 1990. Na época, havia recém defendido da tese de doutoramento (junho de 1990), de que resultou, sem um dos capítulos da tese, o livro Portos de Passagem (sem o subtítulo que lhe havia dado, que seria Linguagem, trabalho e ensino). Aqui retomo um texto de aluno que também usei na tese, não para pensar suas reescritas possíveis, mas como ponto de partida para uma breve enquete com professores de um projeto em que estava envolvido na cidade de Campinas (professores de 5ª. a 8ª. série). Aqui são apresentadas as respostas dadas por professores e graduandos em letras diante do texto do aluno.
O professor como leitor do texto do aluno
Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida,
regular como um paradigma da 1ª. conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético
de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas
expletivas, conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
(Paulo Leminski. “O assassino era o escriba”. In. Caprichos & Relaxos)
Publicando textos produzidos por professores e registrando debates realizados entre professores, o livro Quando o Professor Resolve, organizado por Regina Maria Hubner, não apenas documenta um trabalho possível e aponta soluções construídas no decorrer do processo. Mais do que isso, constitui-se num “poço” de questões, de ideias, de possibilidades. Dele retiro uma passagem em que um texto de um aluno de 4ª. série é citado, e sobre o qual há uma conversa entre os professores envolvidos no projeto.
Não pretendo reproduzir o debate havido. Tomo a passagem como inspiração para a reflexão que se segue.
… Quem começa? Regina, por que você não fala dos textos que você trouxe?
… Tudo bem. Vou entar na pele e contar a história de uma professor que conheço…
(E a personagem entra na roda da conversa).
… Eu queria que meus alunos escrevessem bastante, então, disse a eles para colocarem no papel tudo o que havia acontecido durante o dia.
… Você pensou em partir da experiência da criança?
… Pois é, mas não gostei dos resultados. Vejam por exemplo esse aluno, Luís. Vocês acham que eu poderia dar nota numa coisa dessas?
Nome: Luís Augusto A. Soares, 26/02/1987 4ª. C
MEU DIA
Eu acordei e fui escovar os dentes e depois fui toma café. Ai eu fui arrumar a minha cama. E depois fui jogar bolinha e depois fui joga bola. E depois eu fui anda de bicicleta e depois eu fui au moça ai e fui asidi televisão. E depois eu tomei banho e fui fazer a tarefa e depois vim prá escola.
FIM
Testando leituras (e leitores)
Considerando que o texto de Luís respondia a uma solicitação da professora (colocar no papel tudo o que havia acontecido durante o dia) e considerando que nossa personagem não gostou dos resultados (Vocês acham que eu poderia dar nota numa coisa dessas?), não resisti ao desejo de testar outras leituras do texto. Estava trabalhando com alunos do 3º. ano da graduação em letras e ao mesmo tempo estava envolvido com um grupo de professores da rede municipal de ensino de Campinas (professores de 5ª. a 8ª. série). Na primeira oportunidade que tive, li para meus alunos e para os professores a passagem transcrita acima; transcrevi o texto de Luís no quadro, e provoquei com a seguinte questão:
- O que você faria se fosse o professor desse aluno?
Pedi aos dois grupos que dessem suas respostas por escrito. Como minha pergunta foi considerada insuficiente, a primeira manifestação que tive no grupo de alunos foi:
- É para dar uma nota?
Respondi que deveriam anotar o que fariam, imaginando-se professores do aluno.
No encontro com os professores, a questão não surgiu dessa forma. Uma das professoras afirmou ser impossível qualquer resposta, já que não sabia para que o texto havia sido produzido e, em consequência, não poderia imaginar o que fazer pois, na sua opinião, nada pode ser feito com um texto de aluno se não se souber para que foi escrito.
Mas houve respostas. Apresento a seguir o resultado das observações feitas, agrupando-as em função dos objetivos do texto, problemas apontados, análises desses problemas, trabalhos propostos e preocupações explicitadas pelos sete alunos e pelos catorze professores com os quais conversamos sobre esse texto.
- Quanto aos objetivos do texto
- O texto do aluno seguiu a proposta feita Sim para 4 alunos e 5 professores
- O texto é bom e adequado aos objetivos Sim para 4 alunos e 5 professores
- Problemas apresentados
- Erros de ortografia 7 alunos e dez professores
- Erros de concordância 1 aluno
- Repetição da mesma forma de conjugação
Verbal (ir/infitivo) 1 professor
- Repetição dos articuladores temporais 2 alunos e 13 professores
- Falta de detalhes nas informações dadas 1 professor
- Razões para os problemas apontados
- Influência da oralidade
– sem explicitar como comprová-la 2 professores
– pela ausência do ‘r’ nos infinitivos verbais 6 alunos
– pelo uso de articuladores temporais típica-
mente orais como “e depois” e “aí” 2 alunos
– pelos “erros” ortográficos 4 alunos
– pelos erros de concordância 1 aluno
b) Falta de leitura 2 alunos e 1 professor
c) Falta de atenção, já que oscila na ortografia dos
infinitivos verbais 2 alunos
- Atividades propostas para tentar resolver os problemas apontados
- Leitura do texto em voz alta pela criança 1 aluno e 2 professores
- Sublinhar todas as palavras repetidas, excluindo-as
numa segunda leitura 1 aluno e 9 professores
- Sublinhar os infinitivos para tomar consciência
da oscilação na grafia 1 aluno
- Ler outros textos (narrativos) para melhorar as
Produções futuras 1 aluno e 2 professores
- Corrigir os erros ortográficos explicando 1 aluno e 10 professores
- Estudar com os alunos a diferença entre a oralidade
e a escrita (esta obedece a convenções e não é simples
transcrição da fala) 5 alunos
- Estudar com os alunos a diferença entre língua culta e
Língua popular (nesta teria sido escrito o texto) 2 professores
- Organizar exercícios para o aluno perceber que se pode
dizer a mesma coisa de formas diferentes 1 aluno
- Organizar uma dramatização do texto, para mostrar que
há necessidade de detalhar as atividades relatadas 1 professor
- Estudar conjugação verbal 1 professor
- Organizar trabalho em grupo para os alunos reescreverem
- texto de forma a transmitir as ideias de forma mais
agradável 4 professores
- Estudar a função do parágrafo 1 professor
- Salientar a necessidade de os alunos relerem seu texto
Antes de entregar para constatar os próprios erros 1 professor
- Não fazer nada 1 aluno
- Preocupação básica de qualquer atividade proposta
- Diferenciar oralidade da escrita 1 aluno
- Deslocar a noção de erro para a compreensão das
Diferenças entre língua padrão e língua não padrão 1 aluno
- Cuidar-se pra que as atividades não inibam futuras
Produções dos alunos 2 alunos e 4 professores
Embora em alguns casos os problemas detectados e as atividades propostas possam ser considerados irrelevantes para o texto analisado, alunos e professores foram coerentes entre as atividades propostas e os “problemas” que selecionaram. Pode-se observar nos dados que a grande distinção entre os dois grupos está na forma de interpretação para os problemas apontados: enquanto os sete alunos atribuem os problemas à influência da oralidade, dois deles acrescentando a falta de leitura e outros dois acrescentando a falta de atenção, os professores, de um modo geral, não arriscaram explicações para os problemas que apontaram no texto: um se referiu à falta de leitura e apenas dois observaram a influência da oralidade sem, contudo, explicitar a correlação entre essa influência nos tipos de problemas apontados. A correlação fica, em seus textos, por conta do leitor e é de supor que seja a mesma estabelecida pelo grupo de alunos.
Duas outras observações relevantes:
- Todos os professores apontaram como problemática a repetição dos mesmos articuladores temporais, enquanto o mesmo fenômeno só chamou a atenção de dois alunos.
- O grande número de atividades propostas pelos professores, enquanto os alunos somente conseguiram apontar sete atividades, cinco delas também presentes nas propostas dos professores. Nesse particular há, contudo, um registro necessário: os professores propuseram estudos de assuntos tradicionalmente desenvolvidos em aulas de língua portuguesa (conjugação verbal, ortografia, parágrafo), sem que tais assuntos fossem relevantes para esse texto específico.
Não se trata, no entanto, de comparar as reações dos dois grupos envolvidos. Preocupa-me que apenas um propõe uma atividade que toma as informações contidas no texto: a dramatização. E com esta notariam seus alunos que haveria necessidade de detalhar as atividades relatadas.
Que dizer, então, das leituras feitas? Trata-se de leituras de professores, e estas leituras revelam como o professor lê os textos produzidos pelos alunos: para toma-los como um espaço de trabalho sobre a linguagem, esquecendo-se do trabalho que se faz com a linguagem. Os alunos, ao explicitarem as razões dos problemas detectados, foram além, considerando o próprio trabalho da linguagem e sua presença no manuseio dos recursos expressivos escritos utilizados. Mas as atividades propostas acabam esquecendo esse mesmo aspecto. (Geraldi, 1991)
E se, de fato, o professor quisesse saber como foi o dia do aluno?
O quadro dentro do qual a tarefa é realizada pelo aluno é bastante claro. A professora queria que os alunos escrevessem bastante… por isso, partiu da experiência vivida. Mas seu desagrado pelos resultados revela que, de fato, não havia interesse sem saber da experiência relatada. Também “meus leitores”, em suas observações, tomaram o texto sem qualquer interesse demonstrado em saber o dia de Luís. As informações dadas lhes forma suficientes. E a partir delas listaram enorme quantidade de atividades… Como são insuficientes (apenas enumeram atividades feitas, sem opinar, sem sentimentos, sem detalhes) e como qualquer dos “meus leitores” não se preocupou com isso, posso concluir que meus leitores não foram absolutamente curiosos. E nosso aluno Luís, já na 4ª. série, sabe que, de fato, não se quer saber nada de seu dia. Quer-se, apenas, que escreva (bastante, se possível). A tarefa que se lhe propõe, portanto, é de um relato que não valerá como relato para alguém interessado no que ele fez durante o dia; é um relato que deve mostrar que manuseia recursos expressivos sem que do outro lado haja alguém que considerará os resultados de tal manuseio, mas que tomará os próprios recursos expressivos como objeto de leitura. Opacifica-se o texto, pois não importa com que intenções se trabalhou com a linguagem; importam, na leitura, os esmiuçamentos dos recursos, nada mais.
Se houvesse qualquer curiosidade no leitor, no mínimo algumas perguntas seriam possíveis:
- Afinal, você acordou no horário de sempre? Alguém o chamou? Como você acorda?
- Que pasta de dentes você usa ao escovar os dentes?
- Você perdeu ou ganhou no jogo de bolinha?
- Com quem você jogou bola?
- A que horas você saiu de casa para vir para a escola? Como você veio?
As respostas a tais perguntas, evidentemente, determinarão uma reescrita do texto em que as operações do leitor provocarão operações linguísticas de adição, de substituição, de detalhamento, etc. As pesquisas com base em rascunhos de textos têm apontado algumas dessas operações como fundamentais na construção de novas versões de textos, e por isso operações necessárias para a construção de textos (Fiad, 1990).
Note-se, pois, que a leitura dos textos dos alunos pode ser o primeiro caminho para um trabalho sobre a linguagem. Um trabalho que, por querer efetivamente saber o dia do Luís, acaba por ser mais útil à própria compreensão dos recursos expressivos manuseados na construção de textos.
Referências bibliográficas
Hubner, R. M. (org). Quando o professor resolve. São Paulo, Edições Loyola, 1989.
Fiad, R. S. “Operações linguísticas presentes nas reescritas de textos”. Comunicação apresentada no IX Congresso Internacional da Alfal, Campinas, agosto/1990.
Geraldi, J. W. Portos de passagem. São Paulo, Martins Fontes, 1991.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Comentários