O povo do mar e dos ventos antigos, de Wilson Rio Apa

O povo do mar e dos ventos antigos, de Wilson Rio Apa

Este é o primeiro volume do que surgiu como trilogia e se tornou uma tetralogia, com o quarto volume publicado pela Secretaria de Cultura do Paraná: Os vivos e os mortos.

No entanto, nem é necessário ler todos os volumes para se entusiasmar com a narrativa, com o estilo e com os enredos que já aparecem neste primeiro volume. Trata-se de um livro que se lê encantado pelos encantamentos em que se envolvem suas personagens. E precisamente porque encanta, é difícil de tratar do livro; ele exige que se leia por inteiro.

Tentemos ao menos um registro: todas as personagens estão envolvidas com o mar. Uma delas, já falecida, Januare, fora expulso da terra e passou a viver numa Ilha. Apelidado de Espia, a ilha lhe herdou o nome. Lá construiu sua vida, para lá levou sua neta Ana, a Ana das Almas que será central nesta história. Ana vive os tempos com seu avô, que ouve o mar, que ouve as almas, que ouve os ventos. As almas povoam a vida, estão junto com os vivos. São almas que sofrem, que gemem, que pedem notícias de parentes, que dão notícias, que pedem que Ana cuide de seus filhos… São almas falantes, como o mar fala para quem sabe escutá-lo. Os ventos trazem mensagens e é o poder da ideia que faz de tudo: desde a capacidade de puxar peixes como fazia o velho Espia, transmitir pedidos de urgência e até a compartilhar os pensamentos, como vai acontecer entre Ana das Almas e seu filho, o Menino: eles conseguem tal afinidade e intimidade que um sabe o que outro está pensando, um invade a cabeça do outro.

Este o jogo do encantamento: almas, vozes, falas dos elementos da natureza. Os muitos naufrágios que levam afogados às praias levam ao surgimento de uma família com profissão: Elesbão é o canoeiro que leva os corpos para a Ilha dos Mortos. Carrega em sua perna o sinal da “escravidão”: uma corrente. O Elesbão atual, desta narrativa, foi com o pai em sua última viagem à Ilha dos Mortos. Lá ficou o pai, o filho teve um desmaio e acordou já marcado: a corrente presa. Toma o lugar do pai, e assim por gerações, até o possível rompimento na sucessão do Elesbão de hoje: os filhos temem o mar, trabalham em casa, saem do litoral. Certamente Elesbão é aqui a figura lendária de Creonte, mas sem que haja a paga das duas moedas.

Elesbão é o padrinho do filho de Ana das Almas. Como pôde ela ter tido um filho, vivendo solitária? Ao tempo do avô vivo, ela se apaixona pela alma de um jovem, alma bonita… e vive esta paixão a que se entrega. O avô lhe diz que ela precisa se libertar da alma para ter um homem vivo e de verdade. Era do precisava. Assim, Januare, o espia, o avô, começa a trazer da terra jovens candidatos para substituírem a alma por quem Ana se apaixonou. Não deu certo. Ninguém lhe atraía. Certa tarde, quando o vento era forte, ela na praia não suportava o desejo. Em algum momento, alguém lhe cobre a cabeça com um saco e lhe faz um filho. Surge então o Menino. Isso tudo se fica sabendo porque o filho vivia querendo saber quem era o seu pai, até que Ana das Almas acaba contando seu segredo a Elesbão, mas o filho escuta: nem a mãe nem o filho saberão quem é o pai [desconfio que no desespero de ver a neta feliz, o pai seja o próprio avô, mas isso é intuição de leitor].

Ana das Almas vive às voltas com raízes, com frutos, com a fabricação de remédios. Ela cura os doentes da terra, e deles recebe alimentos inexistentes na ilha. Elesbão será sempre o mensageiro, o que faz o trânsito entre a terra (a colônia) e a Ilha do Espia: traz doentes, leva remédios. É o padrinho do Menino. Teríamos aqui um “Creonte” de dupla face: que transporta os mortos afogados que aparecem nas praias, mas também o que leva vida, que traz a salvação, o remédio de Ana das Almas.

Dois grandes episódios dominam este volume: a alma da Tia já avisara Ana de que vinham em busca de socorro Quirino e sua noiva, Salema. Salema era bela, robusta, a mais bonita do lugar. No entanto teve uma doença: a velheira. Foi ficando velha, velha… O noivo, desesperado vai em busca de ajuda, e lhe falam de Ana das Almas. O percurso é longo, os perigos muitos, mas lá se vai o casal em busca da cura. Enquanto se narra esta caminhada triste, Ana das Almas anda às voltas para conseguir ‘fabricar’ o remédio que cure a velheira.

Quirino queria sua noiva novamente. Como tudo é encantamento, mesmo tendo passado por inúmeras dificuldades, uma delas foi instransponível. Numa Lagoa vivia uma Moça linda, de névoas. Quirino a vê e não consegue mais se desvincular da Névoa… e corre atrás dela, inicialmente abandonando Salema, mas depois levando-a para um barco que encontra na praia, não no rumo da cura, mas para mata-la afogada, o que faz sob o olhar distante do Menino. Salema morre afogada, sem cura, mas não quer sair do próprio corpo agora rejuvenescido pela morte. Elesbão toma o corpo para levar para a Ilha dos Mortos, mas se apaixona pela noiva de Quirino. Ela só pensa em seu ex-noivo, então Elesbão lhe conta quem a matou… Elesbão fica grande tempo na Ilha dos Mortos, até conseguir de livrar desta paixão. Retorna fraco e doente para a Ilha do Espia, Ana das Almas cuida dele, cura-o e ele retorna ao seu trabalho de Creonte.

O segundo grande episódio tem a ver com a peste. Encalha um navio na costa, sem ninguém que o levasse. Logo descobrem: todos no navio estão mortos. O povo da terra corre com suas canoas para retirarem do navio tudo o que havia de bens. Carregam tudo para si, brigam entre si pelo espólio. Ana das Almas insiste que não façam isso, mas assim mesmo o roubo se dá. Acontece que então começa a peste: a Morte – outra personagem central deste romance – colhe vidas e mais vidas. Ana não sabe que remédio poderia curar o povo. Somente a alma de Januare poderia lhe fornecer a receita… No terceiro aparecimento da alma do Espia, o segredo é revelado: havia uma planta com um pequeno olho. Era preciso encontra-la na ilha. Com ela o povo seria curado.

A busca por esta planta durou muito tempo, enquanto isso o povo morria e a Morte fazia sua festa. Ana e o Menino não conseguiam encontrar, até que o Menino tem uma ideia: a planta deveria estar numa região inatingível, perigosa, que a maré rapidamente encobre. Enfrentando o perigo, o Menino acha a planta. Então foi necessário colhê-la e deixar secar com a claridade da lua cheia. Depois de tudo seco, fez Ana das Almas colares com os olhos vivos da planta. E o Menino foi para a terra curar o povo, lutar contra a Morte, correr para chegar antes dela.

É então que o Menino passa a ser o Santo Menino… e isto abrirá, sem dúvida, o próximo volume desta tetralogia de homens, mulheres, almas, mortos e encantos.

Dizer isto tudo, apagando o trabalho de composição é estar absolutamente aquém do que o livro merece. Vou registrar aqui algumas passagens para mostrar este trabalho de estilo, de composição, de linguagem. Inicio com uma pequena passagem em que o narrador está nos apresentando seus mais importantes personagens:

É lá.

lá naquela Ilha de três cômoros, bem na boca da barra, onde começa o parcel da Bandarra e acaba o banco das Palmas

lá vive Ana das Almas, sozinha faz tempo com o filho pequeno chamado Menino

magrinho, ligeiro, sempre pulando na pedra e brincando de pássaro no meio das gaivotas e tesoureiros

Noite q’nem esta de Lua, vazante parando coa brisa no fim da maré

mãe e filho vão pra enseada

quietos se agacham na escuta e na espera

ele das águas

ela das almas

Um segundo trecho, para dar saliva e gosto. Elesbão e o afilhado estão juntos. Em silêncio. Só o Vento e o Mar, numa toada, falam… e o Menino sabe que o canoeiro das almas entende este canto, essa fala:

Conta, padrinho…

O rosto mais escuro que a noite se vira pra ele

os grandes braços se esticam, um pra cima, mão aberta no Vento

outro mostrando o Mar

e o brilho do solhos apontando bem pros dele

– “… o mundo não tem pai nem mãe…

q’nem a vida da gente, igual a bolha

que o Vento tira da espuma

e deixa soinha no Mar

Se não é a onda que acaba com ele

é o sol que na praia seca a bolha

Dela sai um ar que é alma

vive perdida mais um pouco

e some no Vento do Mar…”

É quase assim que o Menino escuta e entende a fala baixa e raspada do canoeiro

– Quanta coisa… ?! Então, ninguém tem pai nem mãe… q’nem a bolha e o mundo? – pergunta o filho da Ana

Elesbão continua contando o que o Mar diz pra ele

agora aponta uma pedra, a corrida dágua voltando

o voo dum pássaro bem na curva da onda

“… tudo em seu passo

até a pedra passa

no rumo da vida

voa o pássaro

anda o homem na trilha

o peixe no corso

a nuvem no Céu

tudo saindo e voltando

pro começo do rumo no Mar…”

A toada do canoeiro some e aparece de novo

e assim vai, até que o Menino já nem sabe direito quem é que fala

se o Vento e o Mar ou o homem  que está junto dele

Quando a maré chega no fim da vazante os dois estão quietos faz tempo, só escutando

aí o filho de Ana sente o peso da mão do padrinho e o cochicho dele coçando no seu ouvido

– … conto pros redeiros a tua resposta certa pro Esfio

O mar é o pai de tudo…

– Até da gente? Pergunta para Ele – pede o Menino

– … a gente só escuta e nunca pergunta pro Mar… 

Referência. Wilson Rio Apa. O povo do mar e dos ventos antigos. Os vivos e os mortos [livro primeiro]. São Paulo : Brasiliense, 1977.

 

 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.