Donald Trump prometeu em sua campanha eleitoral que construiria um muro fechando a fronteira com o México, caminho por que cruzam imigrantes ávidos para fugirem dos muros de cá para viverem de forma clandestina lá.
Há muralhas históricas, como a muralha da China, uma maravilha da engenharia da antiguidade e patrimônio cultural de um passado que se foi. Na Idade Média, as cidades eram muradas. Havia os habitantes intramuros e extramuros. Restam-nos algumas ainda com seus muros intactos, como San Giminiano, na Toscana; Ávila e Alarcón na Espanha; Monsaraz em Portugal. Há as cidades que cresceram além muros, mas estes ainda estão lá para mostrar aos homens de hoje que há história e há passado: Évora e Óbidos em Portugal; Toledo na Espanha; Siena na Itália. Cito apenas cidades que conheço. Há muitas outras, obviamente. São muros-testemunhas de um tempo que, sabemos sobejamente, não se foi, mas que construiu outras formas de dominação.
Há muros da vergonha: o muro de Berlim, que obrigou um investimento maciço na Berlim Ocidental, tornando-a um paraíso que o capitalismo não construiu em lugar algum. Apenas uma vitrine para mostrar o atraso material que insistia existir numa tentativa de um avanço social que deu com os burros n’água precisamente porque não soube aliar avanço material com liberdade, um apanágio do pensamento mais evoluído da humanidade.
Trump não estava blefando. Quer mesmo o muro. E quer mais: que o governo até hoje entreguista do México ajude a pagar o muro. Andam às turras. Trump conseguiu unidade política em torno de Peña Nieto!!! Um feito espetacular. A recusa da América Latina à proposta da ALCA, que levou a outro acordo multilateral, a NAFTA, agora mostra que tinha toda razão Hugo Chavez quando disse em Buenos Aires: “ALCA, ALCA, AL CARAJO!” Os mexicanos pagarão agora os resultados da exploração a que foram submetidos. E não querem pagar o muro! Como disse uma amiga, os mexicanos querem pular o muro para irem buscar o alto padrão de vida norte-americano que deve também a eles uma parte da riqueza que lhes foi tirada. Pularão para irem buscar o que lhes foi furtado e muitas vezes roubado.
Teremos, pois, um novo muro. Materialmente. Exposto a olho nu.
Enquanto isso… por aqui os alicerces do muro imaterial estão sendo ligeiramente construídos por afanados pedreiros de mãos limpas e bem pagos. Aquele que teremos muita dificuldade de derrubar porque representa um muro projetado para o futuro é a Reforma do Ensino Médio. A Medida Provisória que o funda – mostrando desde o começo o caráter autoritário e urgente da fatura a ser paga pelo golpe – produz um muro invertido, um fosso que separará ricos e pobres, aprofundando distâncias e vendendo uma imagem de “liberdade de opção” para um nível de ensino que está realmente precisando de embalo mas não de um abalo como aquele que vem aí…
Teremos opções no ensino médio, segundo as “aptidões” dos jovens que escolherão um dos percursos previstos – humanidades, ciências físico-químicas, matemática, ciências biológicas e ensino profissional. As escolas oferecerão dois percursos, no mínimo. Como há falta aguda de professores de Física, de Química, de Biologia e de Matemática, o que oferecerão as escolas públicas brasileiras aos seus alunos provenientes das classes populares? Ora, humanidades e ensino profissional. Dirão eles isto é ótimo. Prepara os jovens para o mercado. Com que recursos a escola pública dará formação profissional sem oficinas, sem laboratórios e sem professores? Ora, nossos orientadores são previdentes. A Medida provisória já diz: os créditos poderão ser cumpridos no mercado de trabalho. Ou seja, na área do “ensino profissional” as escolas assinarão convênios com empresas, e seus alunos terão formação no trabalho como estagiários ou como voluntários pois de alguma forma, se quiserem completar este nível de ensino, precisarão amealhar créditos e mais créditos… E o Estado ficará apenas com a obrigação de oferecer as disciplinas obrigatórias: português, matemática e inglês!!! O resto, vá trabalhar vagabundo. E não um trabalho com horizontes de efetivação depois do estágio: a fila anda e novos estagiários estão ali esperando os seus lugares… o patronato agradece o trabalho mal remunerado do estagiário e, principalmente, o trabalho voluntário de formação do jovem. Afinal, somos TODOS PELA EDUCAÇÃO, particularmente agora que passará a nos fornecer mão de obra gratuita ou praticamente gratuita!
Para coroar esta obra prima de desfaçatez, muda-se o ENEM que deve deixar de ser um exame de acesso ao ensino superior para se tornar apenas uma avaliação de larga escala para ajudar a definir políticas públicas (como a Reforma do Ensino Médio!!!) tal como idealizado nos anos 1990 pelo mesmo grupo que hoje ocupa o MEC (o ministro do DEM é apenas uma figura decorativa; os técnicos e assessores dos tempos do FHC estão encastelados no INEP e nas Secretarias do ministério).
O bolo da cereja é “a liberdade da universidade” para definir o perfil dos alunos que deseja! Nada de exame nacional contar pontos, um bom jeito de acabar com todas as cotas existentes sem levantar a questão de forma explícita. Ora, para os cursos na área das ciências médicas, as universidades darão pontos maiores para as ciências biológicas e as ciências físico-químicas; para os cursos de Engenharia, exigirão mais do que matemática, ou seja, contarão muitos pontos em suas seleções os conhecimentos de Física, de modo particular. Resumo da ópera: os cursos nobres que sempre foram para os filhos da burguesia e da classe média alta voltarão a ter em seus bancos apenas os privilegiados procedentes das escolas ricas e para ricos, onde serão oferecidos os percursos impossíveis para as escolas públicas! Isso tudo de acordo com o perfil do aluno…
Como todo doce, há que haver uma pitada de sal. O sal fica por conta de dois acalentados programas, um já em execução, outro no horizonte do retrocesso. O primeiro: a redução de vagas nas instituições federais de ensino superior (os Institutos Federais já neste ano tiveram que reduzir sua oferta de vagas); o segundo: o retorno dos cursos normais lastreados nas práticas para supostamente resolver os problemas da alfabetização e letramento, como disse quase explicitamente Maria Inês Fini, presidente do INEP e uma das cabeças retro-pensantes das políticas de educação do governo atual. Há que por em prática o que não deu tempo de fazer nos oito anos de FHC. O estrago será em curto prazo; os efeitos serão de longo prazo.
Observação: este texto resulta de uma conversa entre amigos: Maria Emília, Cida Moysés, Cecília Collares, Corinta e João. Não lhes cabe qualquer responsabilidade pelos meus enganos e pelos meus modos de dizer as coisas.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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