A lenda do Negrinho do Pastoreio, eu a ouvi contada no galpão de minha casa: quando havia visitas de fora, particularmente um tio que vivia no interior, fazia-se fogo no galpão e até certa altura da noite ficávamos todos em roda do fogo. Os adultos tomavam chimarrão (e provavelmente alguma birita qualquer) e nós crianças tínhamos autorização de ficar por lá, ouvindo os causos. Havia assombrações, havia aparições em cemitérios e havia sempre… O Negrinho do Pastoreio.
Somente muito mais tarde tive acesso a história escrita. Simões Lopes Neto lhe deu versão escrita. Segundo a nota introdutória desta edição, elaborado pelo crítico literário e professor Guilhermino Cesar, isto aconteceu em 1906 com o texto sendo publicado no jornal Correio Mercantil de Pelotas, onde nasceu e viveu Simões Lopes Neto.
A história é bem conhecida, porque é contada muito além dos pampas gaúchos e castelhanos, por onde circulava antes de nascer em escrita. Trata de temas eternos da humanidade: a sovinice do rico (aqui um estancieiro); a maldade humana gratuita (aqui representada pelo filho do estancieiro) e a injustiça dos castigos aplicados a inocentes. E como em todos os heróis, em suas mil faces: as agruras sofridas e o auxílio sobrenatural [A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não a tem.]
Eis o enredo: um estanceiro que juntava dinheiro e nada dava a ninguém somente olhava para três criaturas: seu filho, o cavalo baio e o Negrinho. Esta trabalhava desde a madrugada nas lidas da estância. Um dia, depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavalo que ganhasse.
Acontece a corrida e o cavalo baio, com o Negrinho de ginete, perde a parada! Sendo a corrida de trinta quadras e mil onças de ouro, veio o castigo: – Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste; trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos negros… O baio fica de piquete na sogra e tu ficarás de estaca! Quando o Negrinho do Pastoreio dormia, veio o filho do estancieiro e espantou os cavalos. Depois acusou o Negrinho para o pai. Com a ajuda da vela do oratório para a Virgem, durante noites procurou o Negrinho e reuniu todos os cavalos. Mas mais uma vez eles foram espantados pela maldade do filho. Como castigo, além de grande surra, o Negrinho foi posto morto num formigueiro. No dia seguinte, o estancieiro pensando em encontrar apenas os ossos do infeliz, chega ao campo e encontra o menino em pé, vivo. E lhe aparece a Virgem: cai de joelhos diante do escravo.
E desde então, quando alguém perde alguma coisa, basta acender um toco de vela e deixar à vista, que o Negrinho do Pastoreio pegará a vela e com sua luz encontrará o perdido, deixando-o em lugar visível. Se ele não encontrar, ninguém mais o conseguirá.
Reúne a história todas características do mito: as provas a que é submetido o herói – a carreira e os castigos que sofre o Negrinho; o auxílio sobrenatural vindo da madrinha, a Virgem, com que supera os obstáculos postos pela malvadez do filho do estancieiro e por ele próprio; a passagem do limiar da vida comum para outra dimensão (a morte e ressurreição do Negrinho); o retorno do Negrinho agora trazendo do outro mundo a bênção de poder encontrar tudo o que estiver perdido.
Esta edição primorosa com as ilustrações em preto e branco de Vasco Prado oferece além da beleza da história contada pela pena de Simões Lopes Neto, toda a arte de Vasco Prado! Além de uma introdução assinada por Guilhermino Cesar, grande estudioso da literatura gaúcha.
Referência. Simões Lopes Neto. O Negrinho do Pastoreio. Ilustrado por Vasco Prado. Porto Alegre, Gráf. Metrópole, 1991. Apoio Carrefour. 1ª. edição de 1.000 exemplares numerados e assinados por Vasco Prado.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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