O nazi-fascismo cotidiano das ruas brasileiras

Fiquei uns tempos na Dinamarca. Anualmente ficamos um bom período babando filha, netas e genro. Alugamos apartamento (desta vez um quarto junto a uma casa, compartilhando cozinha e banheiros), vivemos a vida comum: criamos rotinas, andamos de ônibus, atentos ao cotidiano que aparece até nas idas ao supermercado.

Certamente a sociedade dinamarquesa é fechada. Seus costumes são diferentes dos nossos. Por exemplo, ninguém pode se sente superior ao outro; numa sala de aula, se há um grupo que realiza com mais rapidez sua tarefa, não pode o professor lhes dar outra tarefa: isto mostraria que os membros deste grupo é “mais competente” do que os grupos que demoram mais para fazer suas tarefas… As avaliações não são em comparação com outro, numa competição aberta por “prêmios”, mas em relação a si próprio entre o estágio anterior e o que pode ser alcançado. Isto é parte da cultura escolar dinamarquesa.

Há competição no mercado de trabalho? Há. Mas também há uma diferença monstruosa entre as formas de distribuição da renda. Um professor universitário em final de carreira ganha um pouco mais do que uma babá ou do que um pedreiro. Não há a diferença abismal que existe por aqui. O estado ainda continua a ser um estado de bem estar social. Os impostos são altos (no preço de um carro, por exemplo, os impostos são mais ou menos de 150%). E todos pagam os impostos. Deve haver sonegadores por lá também, mas certamente não são como os daqui…

Neste retorno, conversando sobre os altos impostos pagos pelos dinamarqueses, ouvi alguém dizer: “mas lá eles têm retorno, aqui não há retorno algum”. Bom, estamos num círculo vicioso: o devedor de impostos justifica sua sonegação porque os serviços públicos são péssimos; os serviços públicos exigem recursos que não há precisamente porque os sonegadores se recusam a pagar mesmo que passem o valor destes impostos ao custo de seus produtos ou serviços. Esta corrente não será quebrada enquanto não houver uma revolução cultural neste país que inclui desde a destruição do fosso abismal das diferenças na distribuição de renda até o fim da sonegação, dos privilégios (lembremos: o bolsa família consome 28 bi anuais; os subsídios aos empresários custaram 270 bi – dados de 2015) e da corrupção.

Mas o choque vai por conta de outras coisas visíveis por aqui, inexistentes lá: fui ontem ao Mercado Público, caminhei mais ou menos um quilômetro (lá, caminhava diariamente 4 quilômetros) e fui abordado por mais de 5 pedintes, passei por mais de 8 pessoas dormindo na rua! Não consigo naturalizar!

Normalmente a classe média brasileira se espanta com o que aconteceu na Alemanha de Hitler. Impossível a população não ter percebido os desatinos do nazismo, de sua SS e de sua política de extermínio de doentes mentais, de deficientes, de homossexuais, de comunistas e de judeus (eleitos como “os inimigos” da nação como aqui a classe média elegeu como “inimigos da nação” toda uma concepção política defendida pelo PT). Não perceber a miséria crescendo, enxergar pessoas vivendo na rua e considerar isso tudo normal, é tapar os olhos, torna-los cegos como estava cega a população alemã durante o nazismo. Aliás, deste ponto de visa, já vivemos num regime nazi-fascista. Somente nos falta um Hitler, papel que Bolsonaro está disposto a preencher. 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.