O moedor de carne

Até quando me casei ainda se dava de presente de casamento um moedor de carne: assim como se batia bife, moía-se em casa. As facilidades oferecidas pelos açougues fizeram com que a máquina de moer carne caseira se transformasse em peça de museu ou de antigualha.

Em minha casa, a mesma máquina também era usada, colocando-se alguns acessórios, para fazer bolachas amanteigadas. Uma festa rara na casa, mas o sabor das bolachas compensava o tempo e a força para fazer a máquina girar com a massa.

Mas também moíamos o amendoim com que fazíamos, na Páscoa, nossos ovos de Páscoa: durante toda a quaresma nós, as crianças, montávamos guarda na cozinha: qualquer ovo que fosse usado deveria ter apenas uma abertura pequena. Guardávamos as “casquinhas” para fazermos nossos próprios Ovos de Páscoa. Torrávamos amendoim, moíamos o amendoim, misturava com açúcar cristal e enchíamos as casquinhas, não sem antes as pintarmos. Os ricos pintavam as casquinhas com tinta óleo, de várias cores, de modo que cada uma acabava com um desenho diferente. Nós pintávamos com algo que também deve ter desaparecido: tinta para tingir roupa – e aí tínhamos vermelhas, amarelas, verdes, azuis… (não havia cor-de-rosa nem para as meninas!)

Mas havia ainda uma terceira técnica: enrolávamos as casquinhas em “papel de seda” de várias cores, molhávamos o papel e colocávamos as casquinhas para secar no forno do fogão de lenha: depois de secos, desembrulhar a casquinha era sempre um gesto de curiosidade: que cores ‘pegaram’, que desenhos apareceram.

Pois vejam só: quantas utilidades domésticas dávamos para as máquinas de moer carne! Aquela que ganhamos de presente de casamento se perdeu nas inúmeras mudanças: em algum momento a abandonamos sozinha em alguma casa ou a colocamos entre os “bagulhos” que se ninguém quisesse se tornariam lixo. A máquina era de ferro e certamente ninguém a quis: jaz morta em algum aterro sanitário. Naqueles tempos não havia recolha de lixo reciclável…

Agora só temos máquinas semi-industriais que enxergamos nos açougues. E “máquina de moer carne” se tornou apenas uma expressão que se usa metaforicamente como quando nos referimos ao modo de funcionamento do judiciário, particularmente o atual judiciário do Brasil: “A justiça dos sistemas totalitários funciona ininterruptamente, como um moedor de carne que gira sem parar” (Imre Kerstész). Mas no bojo da máquina, somente entram carnes escolhidas a dedo, de corpos condenados porque suas mentes pensam ou agem segundo uma lógica que os sistemas à Moro rejeitam. Outras carnes, mesmo de corpos marcados por ações pouco louváveis, jamais irão para a máquina de moer carne que maneja, sem parar, aquilo a que chamavam de Justiça.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.