Os cristãos têm um livro santo que se divide em duas grandes partes: o Velho e o Novo Testamento. Neste, as referências ao “Mestre” são sempre a Jesus Cristo. No Velho Testamento, aquele mais lido entre os evangélicos e os pentecostais – o Novo Testamento não lhes agrada muito porque há pouca vingança e muito amor, excesso de andanças do Mestre com pobres, com pescadores, com raia miúda – a palavra mestre às vezes é usada para se referir aos profetas…
Na antiguidade clássica também aqueles que ensinavam eram tidos como mestres. E não é raro encontrarmos o jovem chamando de mestre a seu amigo, sempre mais velho e seu iniciador nos segredos da vida.
Os conventos, os mosteiros estiveram sobrecarregados de mestres durante toda a longa Idade Média. E neste contexto, permaneceu a expressão “mestre de noviços” para aquele que orientava (ainda orienta?) o tempo em que os candidatos à ordem religiosa faziam sua iniciação, seu “noviciado”.
Depois, a palavra se espalhou para as professoras, para os professores. Uma forma de tratamento respeitoso nos começos da modernidade. Com o avanço da escolaridade de um modo geral – ainda que haja não escolarizados – a palavra quase que regrediu: era pouco usada. Depois foi se especializando, mantendo em alguns contextos de suas origens, por exemplo, quando de fala em “mestre de capoeira”: é o que sabe muito e por isso pode ensinar, é “o cobra”.
Hoje, retornada ao vocabulário destes tempos de escolaridade alastrada, em que se percorre longo tempo nos bancos escolares, do ensino básico à graduação, e desta à pós-graduação, a palavra “mestre” passou a ser um título acadêmico concedido por uma Universidade àqueles e àquelas que cumpriram um conjunto de exigências e defendido uma dissertação. Um nível acima, a palavra “doutor”, antes usada para todo o graduado (em Portugal, este uso permanece), passou também a ser um grau acadêmico concedido aos que defendessem uma tese.
As palavras mudam de sentido, as palavras deslocam-se semanticamente, ganham novos contornos e novas almas. Agora estamos aprendendo a acompanhar uma destas migrações da palavra “mestre” graças aos ensinamentos de uma pastora: o título pode ser concedido pela Bíblia! Como a expressão foi usada num contexto em que a sábia falava de títulos ‘acadêmicos’, e em que disse ser “mestre em educação”, “mestre em direito constitucional também”, não fez arredar pé aquele sentido de título acadêmico. Mas como nenhuma universidade lhe concedeu o título de ‘mestre em educação’, perorou a autoridade: seu título é bíblico… Para os estudantes de semântica, eis um bom momento de observar como a mudança de significações pode provir de uma falsidade afirmada…
Talvez um segundo exemplo deste novo dicionário, desta nova gramática nos tempos de mudança e cansaço com a “política antiga”, porque agora são tempos milicianos, da nova política, seja o emprego do “gerúndio” na conhecida espinafrada que nos passou, a todos nós brasileiros, o colombiano elevado a Ministro da nossa educação: “O brasileiro viajando é um canibal. Rouba coisas dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião; ele acha que sai de casa e pode carregar tudo. Esse é o tipo de coisa que tem de ser revertido na escola”.
Aqui temos um emprego “adjetival” de uma oração reduzida do gerúndio: “viajando”. Assim, podemos dizer que o canibalismo do brasileiro se revela, se desvela, aparece quando ele está viajando. E ser canibal agora significa “furtar” (não podemos falar em ‘roubo’ do ponto de vista jurídico, e em tempos de uma justiça alastrada, é bom ficar atento). Nova mudança no dicionário da língua: ser canibal é ser ladrão. Como todo brasileiro já fez alguma viagem, mesmo que seja o deslocamento dos grotões para a vila ou para a cidade, todos fomos chamados de canibais “quando viajamos”. E ladrões. Por isso um homem educado no ambiente do tráfico colombiano vem ao Brasil para educar os brasileiros. Depois dele, todos seremos puros, sem falhas, imaculados.
Os semanticistas e os lexicólogos terão muito trabalho pela frente, que a coisa recém começou.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Muito bom e, ao mesmo tempo, com uma bela aula. Dos tempos em que professor e professora podiam trabslhar conhecimentos a partir dos ditos em sociedade, dos fatos da vida. Nessa “nova política” e com esse Ministro Colombiano, sei lá como será ! Pobres professores, tristes estudantes!
Mas tem uma coisa: no cotidiano, o controle é difícil. Mesmo com minions soltos por aí.
Lá vamos nós à contrapelo!
Compartilho seus textos no face e no twitter.
Esse aqui está magistral.
(por vezes, até dei umas risadinhas)
Muito bom Wanderley, vou sugerir a leitura no Grupo de Estudos do cotidiano escolar – FE,pq todos nós teremos mto trabalho pela frente e a “coisa” mal começou. Lá vamos todos a contrapelo, isso mm Corinta!